A natureza não decidirá por nós: psicanálise sem fundamentos
Não, nossa ciência não é uma ilusão. Seria ilusão, porém, acreditar que pudéssemos conseguir em outra parte aquilo que ela não pode nos dar (Freud, 2010).
The foundations of psychoanalysis: a philosophical critique (Grünbaum, 1984) é o texto fundamental da sub-sub-área que podemos chamar de “psicanálise e ciência”. A recuperação de Beer (2018) sobre o assunto, por exemplo, foca no uso do conceito de repressão como passível de ser empiricamente verificado. Essa orientação é ilustrada pelo título da parte 2 do livro: “a pedra angular do edifício psicanalítico: a teoria freudiana da repressão está bem fundamentada?”. Ou seja, o objetivo dessa análise seria submeter a psicanálise a algum tipo de avaliação científica. Nesse caso - um ponto enfatizado por Grünbaum -, não apenas de sua eficácia, mas de seus fundamentos. Em um momento em que a legitimidade da psicanálise foi (novamente) colocada em debate público (Costa, 2023), esse assunto retoma sua importância.
Eu gostaria de focar na introdução do livro (que foi a parte que li!). Ela é dedicada a comparar os textos de Freud com textos de filósofos que possuem propostas epistemológicas orientadas pela psicanálise (Habermas e Ricoeur). Apesar de parecer uma parte “estritamente filosófica”, ela tem muito a contribuir para a compreensão da psicanálise contemporânea. Em particular, ela se alinha com o projeto de “estudo crítico dos fundamentos da psicanálise lacaniana” de Eidelsztein (2017) [1] Em resumo, me parece que as críticas de Grünbaum podem ser direcionadas aos praticantes da psicanálise milleriana (Forbes & Riolfi, 2014; Santos, Santiago & Martello, 2012). Passados 39 anos, os problemas apontados por Grünbaum permanecem - se é que eles não se agravaram.
O primeiro capítulo (composto das partes “progresso, perpetuação e diplomacia” “realidade e racionalidade” e “descrição e prescrição”) tem como função situar a questão, descrevendo alguns objetivos e ferramentas. A segundo capítulo trata da questão do romantismo e da bifurcação da natureza e suas incidências na psicanálise, em consonância com Grünbaum. O terceiro capítulo trata da questão da fundamentação - desta vez, em dissonância com Grünbaum. Inspirado no antifundacionalismo popperiano, trabalho alguns outros conceitos (historicismo, pseudociência) e da prevalência do sentimento anti-popper na psicanálise. Não sei, ainda, o que será da conclusão.
Progresso, perpetuação e diplomacia
[...] I have entrusted it to the term diplomacy. Values, if they are not to disappear, have to be diplomatically negotiated. A practical relationism that seeks, in a protocol of relationship-building and benchmarking, to avoid the ravages of relativism—that absolutism of a single point of view. (Latour, 2013, p. 481)
Grünbaum (1984) dá grande privilégio ao texto freudiano. Esse apontamento pode parecer trivial, afinal qualquer psicanalista confirmará que “em psicanálise, sempre temos que partir de Freud”.[2] Cursos sobre “fundamentos da psicanálise” tendem a ser cursos sobre a obra freudiana. Acontece que todo texto sobre Freud ou é hagiografia ou é difamação (Simanke & Caropreso, 2015). Vemos isso na crítica de Pasternak e Orsi (2023): em seus melhores momentos, os autores apresentam uma crítica relevante à instituição psicanalítica (especialmente quando estão falando de outros assuntos). A maior parte do texto, no entanto, não passa de um hit piece pessoal contra Freud. Paralelamente, temos lacanianos que recorrem, com alguma regularidade, a argumentos de autoridade.[3] A aura magnética dos grandes mestres acaba transformando todos os interlocutores em defensores ou atacantes.
Parte da dificuldade dos psicanalistas de responderem a críticas como as de Pasternak e Orsi (2023) deve-se a uma concordância implícita com seu enquadre: que sempre devemos partir de Freud. Esse também é o caso de Grünbaum que, apesar de sua leitura excepcional, aceita a premissa de que a forma de falar de psicanalise (e especialmente de seus fundamentos) é falar da obra freudiana.
Considerando a nebulosidade típica da psicanálise enquanto disciplina, é compreensível que ele decida por esse método. O cenário psicanalítico é notoriamente confuso: uma miríade de abordagens, interpretações, objetivos, metafísicas, associações, etc. Dada essa confusão, se alguém quer fazer uma crítica legítima e relevante à psicanálise, é natural que o enfoque seja dado no único ponto que os psicanalistas efetivamente convergem: sua referência a Freud. Dito de outra forma, o único ponto de comensurabilidade entre todas as matrizes psicanalíticas parece ser sua deferência a Freud. Em ciência, essa comensurabilidade tende a ocorrer por algum tipo de evidência ou critério de objetividade. Em psicanálise não há isso; o que temos é Freud. Mas a necessidade de considerar algo como verdadeiro ou falso permanece.
A forma de um discurso[4] afirmar algo como verdadeiro ou falso segundo seus próprios critérios é chamado por Latour (2013) de veridicção (algo como condições de felicidade/infelicidade em Aunstin). Foucault (1996), por sua vez, sugere que impera na psicanálise o princípio do comentário: para dizer algo novo, é necessário dizer que esse algo já estava na obra original. Eu iria mais longe: o modo de veridicção do discurso psicanalítico é a comparação com o texto freudiano. A forma de dizer algo verdadeiro, em psicanálise, é dizer algo que corresponda a algo que foi dito por Freud. Para usar um dos códigos de Latour: [PER], para perpetuação.[5] Como a teoria do conhecimento em jogo é moderna e representacionalista (o objetivo do conhecimento é representar a realidade), podemos dizer que, em psicanálise, a realidade é Freud.
Esse processo é similar ao que observamos na hermenêutica religiosa, em que passagens ambíguas de textos fundamentais são reinterpretadas para servir a diversos fins. Nesse sentido, esse modo discursivo permite algum tipo de progresso, mesmo que esse progresso seja desacelerado por estar condicionado sob diversas exigências procedimentais. Ou seja: mesmo que o objetivo seja sempre reencontrar o que Freud disse, o tal “aquilo que Freud disse” está sempre em disputa. Mas é uma disputa que demora, porque o sistema em si não privilegia a transformação, mas a perpetuação. O que, convenhamos, também é uma descrição muito similar ao funcionamento científico (Kuhn, 1962).
Grünbaum toma como dado esse funcionamento do discurso psicanalítico. Para ele, a forma de descobrir como avaliar a psicanálise seria verificar/refutar os conceitos freudianos. Fazê-lo estabeleceria um vínculo entre a psicanálise e o resto das ciências, ao mesmo tempo que garante seu modo de existência próprio ([PER]). Com isso, psicanálise se tornaria comensurável à ciência, resolvendo o problema (ou eliminando a virtude) da extraterritorialidade - que, segundo Simanke e Caropreso (2015), é a fonte do problema da hagiografia/difamação.
Grünbaum não tem interesse em transformar o modo de veridicção psicanalítico. Seu interesse consiste em construir uma interface com a ciência que seja tolerável aos cientistas. Similar a Latour, que estava fazendo uma antropologia dos modernos, ele não tem interesse em transformar o modo de veridicção enquanto tal. O antropólogo não está lá para criticar quem ele está observando. Se ele tem uma proposta de transformar algo (por meio da inclusão de evidências extraclínicas), isso não depende, necessariamente, da transformação de [PER]. Tornar a psicanálise uma ciência, nesse sentido, não dependeria dos psicanalistas. A consideração das evidências pode ser incluída no discurso psicanalítico, mas isso não é essencial. O essencial é que essas evidências estejam disponíveis para que o discurso científico opere seu modo de veridicção próprio, em que evidências possuem um papel central.[6] O resultado é que [PER] se torna comensurável a [SCI].
Por outro lado, para mim, enquanto praticante de psicanálise, parece importante considerar a transformação de [PER]. Conforme já apontei, ele me parece desconfortavelmente próximo da hermenêutica religiosa (correspondente ao modo de existência [REL]). Por um lado, isso significa que ele também está próximo da ciência. Mas a diferença central entre [REL] e [SCI] é a relação com o progresso. O interesse é ir para frente ou para trás? Acelerar, intensificar, escalar - ou retornar? O bom é a mudança ou a estabilidade?[7]
The Church [...] Here again we find a hiatus, an agonizing one during which a priest, a bishop, a reformer, a devout practitioner, a hermit, wonders whether the innovation he believes necessary is a faithful inspiration or an impious betrayal. No institution has invested more energy (through preaching, councils, tribunals, polemics, sainthood, even crimes) than in this obstinate effort to detect the difference (never easy to formulate) between fidelity to the past—how to preserve the “treasure of faith”—and the imperious necessity of constantly innovating in order to succeed, that is, to endure and spread throughout the world. (Latour, 2013, p. 43)
O exemplo paradigmático do progresso em [PER] é Lacan. Ele tinha algo novo a dizer, mas sabia que o jeito certo de fazê-lo era argumentar que não tinha nada de novo a dizer, e estava apenas redescobrindo os princípios que já estavam lá. Além disso, ele intensifica o discurso devocional, de forma que a sua inovação possa ser incorporada sem ser percebida.
Naturalmente, hoje temos lacanianos (Eidelsztein, 2017) argumentando um retorno similar a Lacan. E seguimos retornando.
Estou contente de poder, assim, introduzi-los no movimento lacaniano, ainda que não acreditemos que tal movimento exista. Acreditamos, antes, que existe um movimento psicanalítico que se pôs a derivar para a causa da psicologia do Eu e que Lacan restaurou na sua verdadeira prática e seus verdadeiros fins. (Miller, 2012, p. 15)
Esse trecho ilustra o caráter conservador de [PER] e a sua similaridade com [REL]. De fato, a questão de qual seria a diferença entre os dois continua em aberto.[^8] É um discurso muito similar ao que Popper (1963) denomina como verdade revelada, com suas consequências similares de conspiracionismo. Já que a verdade se revela sozinha, aqueles que não a alcançam devem ter algum problema - tornando fácil demais a demarcação entre devotos e hereges. É importante que haja algum mecanismo de distinção entre verdadeiro e falso. Mas rapidamente o caráter de verdade ou falsidade de uma afirmação se transforma em virtude ou vício de um praticante.[8]
Assim, considero importante colocar em questão o próprio modo de funcionamento dessa discursividade - uma tarefa absolutamente inconveniente, já que ela tem como interesse explícito o congelamento das coisas. O que significa que teremos que ser criativos. Uma ferramenta para isso pode ser o que Latour (2013) chama de diplomacia.
Ele separa os discursos em instituições, valores e fundamentos. Minha sugestão é a seguinte: o que importa são os valores . O problema é que valores são sempre injustificáveis. Para resolver esse problema, nós inventamos os fundamentos - uma forma convencional de discutir valores. Acontece que, com alguma regularidade,[9] os fundamentos deixam de estar alinhados com os valores. O papel da diplomacia consiste em mostrar que existem fundamentos alternativos que atenderiam melhor os valores dos integrantes da instituição do que os fundamentos atuais. Para isso, é necessário um trabalho de investigação dos valores de uma instituição.
Em nosso caso específico, é importante que essa pesquisa seja feita com os praticantes, e não com seu textos fundamentais. Eu não sou antropólogo, então o que posso fazer para descobrir “o que os psicanalistas realmente querem” é uma pesquisa documental. Uma fonte interessante desses dados me parece ser os livros de compilação de textos de autores menores, associações e programas de pós-graduação (como Forbes e Riolfi (2014) e Santos, Santiago e Martello (2012)). Outra fonte interessante são documentos não acadêmicos, como, por exemplo, uma propaganda que eu recebi hoje:
Oferecer o seu “não saber” é sinônimo de: ESCUTE!!! Não atropele o sujeito com o seu saber e com seus muitos anos de experiência! A vivência analítica será sempre única... Singular... Isso é uma das coisas mas lindas no ser humano e na vida! (Retirado daqui)
Me parece que o importante não é a realidade do conceitos freudianos, mas a racionalidade que organiza a psicanálise, de forma que esse modo de veridicção seja tomado como legítimo. O comportamento questionável dos psicanalistas não tem como origem uma falsidade dos fatos em que acreditam, mas no próprio funcionamento de sua instituição - na forma com que essa verdade ou falsidade é determinada. Assim, parte de minha proposta metodológica consiste em evitar páginas e páginas de referências às Obras Completas e aos Seminários. Veremos se é possível fazer filosofia da psicanálise sem hagiografia ou difamação.
Evidentemente, você já pode estar entendendo este texto como difamatório. Por um lado, podemos apenas dispensar isso como os ossos do ofício, afinal “a crítica da mitologia hagiográfica é percebida como difamação e a crítica da mitologia difamatória é percebida como hagiografia” (Simanke & Caropreso, 2015, p. 12). Mas creio que isso pode ser argumentado. A categoria de difamação depende de seus objetivos: se está apenas interessada em denunciar gratuitamente (como fazem Pasternak e Orsi, 2023) ou se há alguma intenção construtiva.
O problema é que os praticantes de psicanálise agem como estivessem sob constante risco. Se o objetivo é retornar, toda tentativa de ir para frente não deixa de ser, também, uma ameaça. Toda mudança é um passo que se distancia da autenticidade original da psicanálise. “Intenções construtivas” são incomensuráveis pois a ideia de construir envolve acrescentar algo, e o objetivo é precisamente a remoção de tudo o que não são os fundamentos. Extraterritorial, a psicanálise está sempre sendo perseguida: a peste sempre sob ameaça ser sanitizada pelo Sistema.[10] Nesse contexto bélico, ou você é a favor, ou você é contra. Toda crítica à psicanálise é automaticamente classificada como gratuita, ou mal-informada, o irrelevante.[11]
Não estou aqui para destruir a psicanálise, mas também não estou aqui para protegê-la. Quero apenas ver aonde chegamos. Meu objetivo é o progresso da disciplina. E isso significa que ela deve correr o risco de se transformar.
O progresso, em seu sentido clássico, busca a pureza das luzes. A perpetuação, em seu eterno retorno, possui um objetivo similar: conservar uma pureza original. Evitar a transformação, evitar a contaminação. Ambos possuem, portanto, ambições Modernas (Latour, 1993).
O tipo de progresso pelo qual estou advogando aqui valoriza justamente essas categorias negligenciadas pela perpetuação: hibridismo, mutação, contaminação, transformação, etc. A ideia é pensar uma psicanálise que não funcione pelo modo da perpetuação, e esteja aberta ao futuro. Minha esperança é conseguir fazer algum tipo de diplomacia, ao mostrar que essas ideias estão mais alinhadas com os objetivos da psicoterapia (preocupada, fundamentalmente, com ao que muda) do que os valores assumidos pelo modo da perpetuação (preocupada, fundamentalmente, com o retorno a uma autenticidade original).
To encounter the Moderns in order to ask them: “But finally, what do you really care about?”—is it not to prepare ourselves better for the diplomacy to come? (Latour, 2013, p. 479)
Realidade e racionalidade
Rationality requires no foundation, only critical dialogue: this spells the end of foundationalist philosophy. (Gattei, 2008, p. 3)
Hacking (1983) separa a filosofia da ciência em duas partes: a questão da realidade e a questão da racionalidade. Ao autor do “realismo de entidades”, naturalmente, concerne a questão da realidade.
Grünbaum também está interessado na questão da realidade - a existência de certos conceitos. Ele, inclusive, não reage bem à ideia de Ricoeur de restringir sua filosofia da psicanálise apenas ao conteúdo linguístico que ocorre no tratamento. Isso deixaria de fora tanto o conteúdo não-verbal quanto o conteúdo extraclínico. Para Grünbaum (que não faz mais do que levar Freud a sério), não se trata simplesmente de saber se a prática terapêutica da psicanálise é útil ou eficaz. Ele se interessa em saber a psicanálise como um todo - incluindo suas implicações sociais e políticas - é bem fundamentada.
Ele, inclusive, denuncia um tipo especial de hermeneuta que descarta a necessidade de considerar a questão da causalidade. Para saber se um elemento da teoria realmente existe, observamos seu papel como causa de um outro evento observável. Sem considerar a causa, a própria noção de existência se torna supérflua.
Other hermeneuticians have sought to immunize their undertaking against the risks of causal imputations by reconceptualizing, more radically than Ricoeur or Gauld and Shotter, the very aims of the psychoanalytic elucidation of “meaning.” This stratagem has likewise had much appeal to a good many analysts. [...] Be of stout heart, they are told, and take the radical hermeneutic turn. Freud, they learn, brought the incubus of validation on himself by his scientistic pretensions. Abjure his program of causal explanation, the more drastic hermeneuticians beckon them, and you will no longer be saddled with the harassing demand to justify Freud's causal hypotheses. One such hermeneutic advocate illustrated this repudiation of causation as follows: “the meaning of a dream does not reside in some prior latent dream [content, as Freud had claimed], but in the manifest dream and the analysand's associations to it” (Steele 1979: 400). (Grunbaum, 1984, p. 57)
Eu não sou hermeneuta, mas esse é o meu caso. É do meu interesse tornar a noção de existência supérflua. Essa solução trivializante, desprezada por Grünbaum, me parece a mais adequada. Não acho particularmente relevante a discussão sobre a existência das coisas. Me interessa mais a questão da racionalidade - não sobre o que, mas sobre como.
Começamos mal, se perguntamos o que alguma coisa é. (Pombo, 2021, p. 1)
Quando se sugere que o “sentido do sonho” não reside em um conteúdo psíquico mas em uma associação presente do analisando, a sugestão é recusar a posição decifratória (freudiana) cujo objetivo seria descobrir o local onde reside esse sentido. Um exemplo similar ocorre em Eidelsztein (2017) ao abordar a teoria freudiana das pulsões, que seriam como bolinhas armazenadas em uma bolsa. Para ele, em Freud realmente haveria um objeto guardado no aparelho psíquico; para Lacan, por outro lado, as coisas se determinariam por seus efeitos, suas funções, suas relações. Essa perspectiva, de inclinação cibernética, é alinhada com o pragmatismo que proponho aqui. É precisamente essa passagem da metapsicologia para a linguística que permite que se descarte a questão da realidade. O vocabulário linguístico lacaniano se presta a fazer outras perguntas.
O papel do sonho na clínica é ser útil. Se esse papel é resultado da “relação de causalidade entre conteúdos recalcados e sua manifestação em sonho sob condensação e deslocamento” ou não, numa perspectiva estritamente prática, simplesmente não concerne. O que não quer dizer que será um problema se alguém encontrar essa relação algum dia. Mas me permito aqui a especulação de que os clínicos que se importam com sonhos hoje não mudarão seu comportamento, não importa o resultado dessa investigação. Como não há nenhuma forma pela qual o clínico pode manipular essa causalidade, a preocupação com ela está fora dos concernimentos dos praticantes.
O valor do sonho, como o valor de qualquer significante, é o valor de promover associações de forma a possibilitar mudanças na vida - pois esse é o objetivo da clínica. A questão metafísica sobre se o sonho “realmente possui” um conteúdo ou “apenas representa” um conteúdo, tal qual a questão sobre se temos acesso ao sonho ou apenas a um relato dele, me parece irrelevante.
Enquanto clínico, simplesmente não me interessa a justificação das hipóteses causais freudianas. Mas eu, obviamente, não me entendo como freudiano. E certamente não da forma com que alguém como Miller (2012) o faz: funda uma escola freudiana (que é lacaniana), chama a Verdade derradeira de verdade freudiana, defende o retorno à causa freudiana, etc. Reitero a citação:
Estou contente de poder, assim, introduzi-los no movimento lacaniano, ainda que não acreditemos que tal movimento exista. Acreditamos, antes, que existe um movimento psicanalítico que se pôs a derivar para a causa da psicologia do Eu e que Lacan restaurou na sua verdadeira prática e seus verdadeiros fins. (Miller, 2012, p. 15)
Quando falei em discurso devocional, é a isso que me refiro. É para esse tipo de pessoa que a confirmação ou desconfirmação das hipóteses causais freudianas deveria apresentar um risco existencial. Você perceberá, falando com psicanalistas, que esse risco não ocorre. O risco que a psicanálise corre é constante, mas é abstrato. A verdade das certezas freudianas não está em questão. Não são elas que correm risco - o risco é que essas verdades sejam suprimidas, e não refutadas. É esse, precisamente, o problema.
A Escola Brasileira de Psicanálise – Escola do Campo Freudiano (EBP – ECF), fundada em 30 de abril de 1995 pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP), no Rio de Janeiro, inscreve-se no movimento de reconquista do Campo Freudiano lançado por Jacques Lacan no dia 21 de junho de 1964, ao fundar sua Escola. A EBP tem por objetivo a psicanálise e, por finalidade, a restauração de sua verdade e a transmissão de seu saber, oferecendo-o ao controle e ao debate científico. Ela ministra uma formação e garante a relação dos psicanalistas, seus membros, com esta formação, colocando-a em debate. (site da EBP, grifos meus)
Descrição e prescrição
knowledge has no final legitimacy outside of serving the goals envisioned by the practical subject (Lyotard, 1984, p. 36)
Minha sugestão de deixar de lado as questões da fundamentação e da realidade pode parecer com a frase cotidiana: “é claro que tem evidências, eu vejo funcionar na minha clínica todos os dias”. Mas, ao contrário das propostas de Habermas, Ricoeur, Miller, etc, eu não entendo que a psicanálise é um novo método de alcançar uma nova verdade. “Verdade”, nesse contexto, significa apenas “serve aos meus propósitos”. A discussão interessante é sobre quais são esses propósitos.[12]
A questão da racionalidade costuma ser entendida como a descoberta/criação de um “método científico” ou de uma “lógica científica”. Esse me parece um enquadre antiquado. (Esse contexto da busca por uma lógica própria da ciência é uma das poucas situações em que me parece legítimo afirmar que Popper era positivista). Apesar disso, por meio de seu antifundacionalismo, ele nos ajuda a pensar sobre a racionalidade de forma mais interessante.
A preocupação com a existência pode ser descrita como: “se funciona, deve funcionar porque algo causou esse efeito”, nos convidando a descobrir que objeto é esse. A descoberta das causas torna uma ciência bem-fundamentada. Dado que a psicanálise lida com os objetos que Freud inventou para funcionar como causa para os fenômenos que observava, a psicanálise estará bem-fundamentada quando ela conseguir provar a existência desses objetos. Assim, ela constituiria aquilo que querem Habermas e Ricoeur: a descoberta inovadora de um objeto e um método - de forma similar à invenção do microscópio ou do telescópio, conforme sugerido por Strachey e Eissler (Grunbaum, 1984, p. 34).
Nesse sentido, a psicanálise não seria só um novo dialeto para falar sobre velhas coisas, mas de fato uma nova ciência: um novo método, um novo objeto, uma nova lógica. Antes tínhamos a lógica, depois a dialética e agora as leis do inconsciente. Antes tínhamos a Razão, depois o Espírito, e agora o Real. Mais do que apenas uma nova tradição, Habermas chega a afirmar que ela seria o protótipo das ciências do espírito.
Grünbaum se dedica a refutar essa hipótese de que a psicanálise apresentaria mais do que uma novidade conceitual. Ele afirma (junto de Freud, e Popper, e Pasternak) que só há uma ciência.
Ele o faz afirmando que todas as sugestões de Habermas sobre o assunto vão na direção contrária do que Freud falou. Assim, não é por critérios externos, mas apenas porque não corresponde à realidade tal qual determinada pela discursividade psicanalítica.
Concordo com todos esses “positivistas” que não sentem a necessidade de descobrir o mais novo e verdadeiro método científico.[13] Mas discordo deles na medida em que eles acham que a Ciência possui um tal método. Tomo aqui uma posição rortyana, que se satisfaz em entender diferentes práticas (ciências, arte, etc.) como diferentes vocabulários para lidar com o mundo. De interesse particular aqui, essa perspectiva prescinde da necessidade do estabelecimento da realidade das coisas, tendo em vista que a realidade é resultado do processo de investigação (Latour & Woolgar, 1986), e não uma matéria inerte a qual a investigação tenta representar.
Não é que não se deva investigar essas questões da existência. Parte do fracasso das abordagens prescritivas em filosofia da ciência (ou seja, Popper) é a incapacidade de controlar o que as pessoas investigam; elas estudam o que elas querem. Pessoalmente, eu não acho interessante fazer perguntas sobre “o que as coisas realmente são”. Mas, para além dessa questão de preferência, considero que esse tipo de pergunta induz a buscar as essências secretas dos objetos[14] - um risco ainda mais presente na atmosfera milleriana de romantismo.[15]
O essencialismo promete a resolução dos problemas não por decisão, mas pela força autoevidente de uma verdade inquestionável (Popper, 1963). Em última instância, isso nos passa a impressão de que se temos algo difícil a resolver, podemos apenas delegar para a natureza decidir por nós. Isso nos passa a impressão de que as únicas perguntas importantes são sobre como representar a natureza adequadamente (Rorty, 1979) , e o resto apenas se encaixaria sozinho.
É isso que querem, por exemplo, Pasternak e Orsi (2023): que a ciência pergunte à natureza o que fazer, e que a natureza responda. Dito em outras palavras, que ela decida por nós (Popper, 1945). Que ela decida, não só o que as coisas são, mas o que fazer com elas. É, fundamentalmente, uma confusão entre modos descritivos e prescritivos de linguagem:
Clearly, this mode of legitimation through the autonomy of the will gives priority to a totally different language game, which Kant called imperative and is known today as prescriptive. The important thing is not, or not only, to legitimate denotative utterances pertaining to the truth, such as “The earth revolves around the sun,” but rather to legitimate prescriptive utterances pertaining to justice, such as ”Carthage must be destroyed“ or ”The minimum wage must be set at $“ dollars. ” In this context, the only role positive knowledge can play is to inform the practical subject about the reality within which the execution of the prescription is to be inscribed. It allows the subject to circumscribe the executable, or what is possible to do. But the executory, what should be done, is not within the purview of positive knowledge. It is one thing for an undertaking to be possible and another for it to be just. Knowledge is no longer the subject, but in the service of the subject: its only legitimacy (though it is formidable) is the fact that it allows morality to become reality. (Lyotard, 1984, p. 36)
Entre racionalidade e realidade, a avaliação de eficácia terapêutica está mais para o lado da racionalidade. A eficácia é desacoplada[16] de sua realidade: tanto para o paciente quanto para o terapeuta, não importa qual é o mecanismo causal em operação. Importa, apenas, que o tratamento funcione.
Mas o que é “funcionar”? O que é um tratamento “eficaz”? Apesar da formulação essencialista (“o que é X?”), isso é um problema de racionalidade. Não se trata de descobrir ou representar entidades, mas de decidir o que consideramos racional, útil, interessante, eficaz, bem-sucedido, etc.
Parte da crítica a essa ideia de que o Fato determina o que devemos fazem foi feita por Popper (1974) em sua crítica ao positivismo lógico.[17] Popper insiste com alguma frequência: somos nós que decidimos. Isso não é só porque ele era um neoliberal individualista. Seu objetivo era enfatizar, que nós não somos arrastados pelas leis universais da história ou pelas verdades autoevidentes. Em última instância, a tarefa de decidir é diferente da tarefa de descrever.
Ou seja, existe um certo consenso de que não existe (ou se existe, não tem como afirmarmos nada sobre) uma experiência pré-linguística que apresenta uma relação direta entre sujeito e objeto, sem a interferência distorcida da linguagem. Grunbaum chega a citar Freud argumentando esse exato ponto.[18] Toda observação é atravessada por uma teoria.
“Toda observação é atravessada por uma teoria” pode ser considerada a pedra angular da obra de Eidelsztein (2017). Mas, se esse é um ponto tão trivial, porque ele constituiria o fundamento dessa obra? Por que, mesmo que Freud tivesse argumentado em função disso, seus herdeiros parecem ter ido em outra direção. Ou seja: segundo as próprias regras do discurso psicanalítico, parece ter algo de errado aí.
Isso situa a posição do analista, que não é a de compreender, mas de suspender a significação de suas palavras. Isso lhes dá a oportunidade de fazer o mesmo, de modo que vocês, assim, possam aprender algo sobre o que lhes acontece. Isso só é possível à medida que vocês tomam distância dos próprios fantasmas. Na psicanálise, os atos falhos, ou os atos bem-sucedidos, como vocês sabem, são fracassos no que concerne à significação, ou seja, em termos de intencionalidade. Todavia, esses atos são bem-sucedidos no que concerne à verdade, que surge do mal-entendido. (Miller, 2012, p. 32).
Enquanto uma orientação sobre a técnica, é uma boa teoria. “O analista abre espaço para que o analisando descubra quais são as teorias que ele já possui”, ou algo do tipo. “Não deve-se compreender”, no sentido de não impor uma significação sua ao que o paciente fala, e com isso dar espaço a seus fantasmas. Fornecer um espaço de escuta, sem que o paciente tenha que se preocupar com o que o analista quer dele.
Nisso, você empresta sua língua, sua boca a algo que fala através de você a despeito do que você quer dizer. É a verdade que nenhum grau de controle pode domesticar […] É a verdade freudiana. A verdade do lapso, dos equívocos, do que não se deixa apanhar. (Miller, 2012, p. 25).
O risco é sempre esse salto epistemológico: não é só a oportunidade de descobrir as idiossincrasias do paciente. Essas idiossincrasias são a Verdade. E a verdadeira verdade (em oposição aos saberes secundários da ciência) são obtidos por meio do não-saber.
Parece-me que em três frases Lacan diz muito. Ele define aquilo com o que a psicanálise tem verdadeiramente de lidar. Isso implica uma nova e estranha teoria da verdade e do real, que não é a realidade externa. Eu reconheço que tudo isso seja, talvez, difícil de compreender. Creio, digamos que se fazer compreender não é a mesma coisa que ensinar. De certa maneira, é até o contrário. Compreende-se somente o que já se crê saber. Mais precisamente, só se compreende um sentido cuja satisfação e conforto já foram experimentados. Não se compreende senão os próprios fantasmas. Além disso, apreende-se melhor pelo que não se compreende, pelo nonsense (Miller, 2012, p. 31).
É apenas um jogo retórico, mas com grandes consequências. Com esses poucos passos, já estabelecemos as bases de uma teoria romântica do conhecimento.[19] Uma teoria que, ao mesmo tempo que enfatiza a Força do Ser Humano, acaba por fazer, também, que a natureza decida por nós. Somos arrastados pela revelação da verdade singular. O romantismo é uma resposta ao cientificismo, mas ele permanece Moderno.
Atravessado por influência romântica e fenomenológica, não se trata apenas de uma forma de descobrir certas ideias que você já acredita ou preferências que você tem. É uma forma de descobrir a verdade indomesticável, força indomável da natureza humana que nos fornece nossa dignidade. “Não deve-se compreender” - deixando a coisa-em-si emergir em sua espontaneidade.[20]
Isso é exatamente o oposto de “toda observação é atravessada por uma teoria”. Irônico, considerando que, com uma pequena modificação, seria exatamente a mesma coisa. Bastaria que esse conteúdo descoberto no final de tudo fosse mais uma teoria, mais um vocabulário: o vocabulário final (Rorty, 1989) de alguém.
Mas isso seria uma teoria genérica sobre a psicoterapia - e sabemos, por princípio, que a psicanálise é especial. Ela lida com aquilo que é mais profundo. Portanto, isso deve significar que finalmente encontramos a verdadeira forma - o método freudiano - de alcançar a natureza tal qual ela realmente é. Descobrimos em que língua que o livro da natureza foi escrito: em silêncio.[21] O método para reencontrá-lo, portanto, também será o silêncio (o não-saber, o não-compreender, o nonsense), de forma a não deformar a autenticidade do ser com a presença de vocabulários externos. A verdade freudomilleriana - que não é mais do que a autenticidade do senso comum - surge no silêncio da clareira do Ser.
Miller toma a saída do godtrick (Haraway, 1991). O godtrick consiste em encontrar uma terceira coisa secreta, anterior (superior, mais fundamental, mais primitiva, etc) aos elementos em questão, preferencialmente feito de uma substância secreta - como é o caso da singularidade inefável do real do corpo. É a mesma petição de princípio que Grünbaum imputa a Habermas..[22] É, também uma manifestação do que Rorty (1982) chama de realismo intuitivo[23]
Mesmo que Miller esteja sugerindo uma prática interessante, vemos com seus discípulos que a linguagem romântica e sua a pretensão epistemológica de superar a ciência tomam um papel não-trivial nela:
Jacques Lacan, diferentemente [de Freud], recorreu à linguística, à topologia, à matemática e por fim até à biologia no esforço de conferir às estruturas freudianas uma formalização mais precisa. O que certamente nunca será suficiente para assegurar a magia do que se alcança como efeito da ação do analista na experiência psicanalítica (Santos & Santiago, 2012, p. 8).
Lacan é todo desse jeito! Ele termina sempre por estender a mão aos poderes do horror e das sombras (Miller, 2012, p. 22).
Freud's unconscious is not at all the romantic unconscious of imaginative creation. It is not the locus of the divinities of night (Lacan, S 11, p. 24).
Flectere si nequeo superos acheronta movebo (Freud, 1900).
Não há instância alguma acima da razão. (Freud, 2010, p. 79)
Mas então a psicanálise é romântica ou é iluminista? É cientificista ou é mágica? Faz sentido que Grünbaum restrinja seu escopo a Freud!
Há uma tensão fundamental na psicanálise entre romantismo e iluminismo (conforme sugerido em Eidelsztein[24]). Mas, ao contrário do que ele sugere, Freud não apenas um romântico. E ele também não era totalmente positivista (Figueiredo & Loureiro, 2018). Assim, é de nosso interesse estudar a questão da bifurcação entre natureza e cultura, entre ciências da natureza e do espírito, etc. que se manifesta sob o nome de Modernidade.
Perceba, também, como eu passei a fazer exatamente aquilo que eu gostaria de evitar - discutir sobre o que Freud realmente acreditava. Também podemos observar isso nas citações acima: como o modo de veridicção em psicanálise passa por falar sobre o que os outros acreditam. Se Pasternak quer que a natureza decida por ela, Miller quer que Freud já tenha decidido, nos restando apenas a oportunidade de “nos acostumar com esse real” (Lacan, 1974/2013). Nada é de sua responsabilidade: a biologia é lacaniana (Miller, 2001), a verdade é freudiana, etc. Pra falar a verdade, a psicanálise lacaniana nem existe!
É devido a todo esse funcionamento que levanto a hipótese peculiar de que, no discurso psicanalítico, o texto freudiano é um equivalente estrito à realidade. E a forma de fazer um enunciado bem-fundamentado, portanto, é referenciar adequadamente a Freud (em uma situação de ciência normal) ou mostrar como ele, na verdade, já acreditava em algo (em uma situação de ciência extraordinária). Assim, a descoberta de Freud se perpetua eternamente. De fato, o que existe de mais novo em psicanálise é Freud.
“The Moderns are those who have kidnapped Science to solve a problem of closure in public debates.” One doesn’t have to be a genius to imagine situations in which the adventures of knowledge can be put on the wrong track in this way. We discover such situations as soon as we turn back to the agora where, as we have seen, the fate of categories is decided— amid the tumult, the controversies, the endless quibbles, the polemics always at risk of slipping into violence and rampage. Let’s suppose that there arises, here, a way of “saying something to someone,” a life form, a literary genre, that procures the unexpected advantage of giving the impression to anyone who uses these tropes that they put an end to debate, bring closure to controversies, by mobilizing, through various conduits, various ploys (which will never appear as ploys), these transfers of necessities, transfers that have now become indisputable. What appeared so improbable, in the previous chapter, in the amalgam between ways of knowing and the peregrinations of existents now takes on a formidable efficacity: through a subtle bypass operation, a seemingly metaphysical question (of what is the world made?) is linked to a question of argumentation (how can we put an end to the endless squabbling?) (Latour, 2013, p. 129).
Apesar de inimigos mortais, tanto Miller quanto Pasternak[25] são Modernos. Ambos negam a necessidade de mediação para que exista algum tipo de racionalidade ou objetividade. Ambos fazem a mesma coisa em relação à injunção popperiana que não podemos terceirizar nossa responsabilidade para a natureza. Isso é feito por meio da fundamentação, que consiste no contato direto com a realidade. Esse fundamento faz o trabalho do Double Click (modo [DC]; Latour, 2013), que é finalmente encerrar a discussão por meio da remoção de todas as mediações e situações.
Encontramos, também, o comparecimento desse tema em Beer (2020) sobre a função normativa da verdade, tal como nas diversas respostas de Dunker (Costa, 2023) a Pasternak & Orsi (2023). Essas tentativas “positivistas” de determinação da verdade costumam ter como objetivo evitar as complexidades da política.[26] Como se uma descrição especialmente precisa, verdadeira e bem-fundamentada pudesse, finalmente, servir como uma prescrição.
Enquanto Pasternak se preocupa em adjudicar se o efeito placebo “realmente existe” (o que só será verdade após ser encontrado no cérebro), cientistas mais sérios parecem estar indo na direção contrária - talvez todos os antidepressivos não sejam mais do que placebo (Kirsch, 2019). Outro exemplo disso é a polêmica documentada aqui , em que descobrimos que mesmo que a psicanálise possua evidências de eficácia, elas são péssima qualidade (Ferreira et al., 2022). O que acontece, na verdade, é que esse nível (péssimo) de qualidade de evidências é compartilhado tanto com outras psicoterapias quanto com a medicina (Matthias et al., 2020). Mas não tem ninguém indo por aí dizendo que a medicina não possui fundamentos.[27] Parece, então, que o problema não é sobre a descoberta realidade das coisas, mas, para variar, é um problema estético, político, moral - filtrado pela forma que nós sabemos discutir as coisas, ou seja, por meio do espelho da natureza (Rorty, 1979).
Portanto, a questão de como medir a eficácia não é algo que se responde por meio de uma lógica universal da ciência ou um método específico que seria científico, mas, em última instância, é uma questão do que nós desejamos com um tratamento. Daí a primeira dificuldade em medir a eficácia de uma psicoterapia: psicólogos de diferentes abordagens não concordam entre si sobre o que conta como um tratamento bem-sucedido.[28] E não há dado imediato da realidade que resolverá essa polêmica por nós.
Referências
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Notas de rodapé
- Para mais detalhes, ver seu “projeto de investigação científica” em https://apola.online/programa ↩︎
- “se me perguntassem, na condição de convidado que vem de longe para lhes falar, o que há de novo em psicanálise, eu lhes responderia: Freud.” (Green, 1990) ↩︎
- “Tal colocação, para muitos questionável e que pode parecer violenta hoje aos transativistas, vinda de uma das maiores autoridades em psicanálise que já existiram, deve nos levar a pensar sem medo: é possível mudar de sexo? É possível um homem “transformar-se” em mulher ou uma mulher em homem? Será que não se trataria aí de uma crença fantasística ou delirante em que a ciência encampa fazendo as pessoas acreditarem que ela é viável?” (Jorge & Travassos, 2018, p. 110) ↩︎
- Latour (2013) enfatiza que não são “discursos”, mas modos de existência ontologicamente genuínos - não apenas “modos de falar sobre as coisas”. Essa distinção não me parece importante aqui. ↩︎
- “En unas últimas consideraciones, la autora sostiene que, en lo que concierne al psicoanálisis, prefiere evitar la palabra transmisión, sustituyéndola por perpetuación. Utilizando términos como resistir o perpetuar, Soler apuesta por un psicoanálisis que no cambie, que permanezca inmodificable y aguante tal y como fue concebido por Freud.” (Guillamón, 2023, p. 8) ↩︎
- Aqui divirjo de Latour (2013) em sua consideração do discurso científico, que considero excessivamente complexa. Para mim, basta um outro modo de existência [SCI]. ↩︎
- Sobre escalabilidade e suas consequências destrutivas, ver Tsing (2015). Sobre o privilégio da stasis em Platão como uma metafísica conservadora que resulta em autoritarismo, ver Popper (1945/2011) ↩︎
- Para uma ilustração etnográfica desse processo, ver Antonio (2015). ↩︎
- “In other words, our ethnologist has a clear sense that there is here, in the history of the Church, an almost perfect model of the complexity of the relations between a value and the institution that harbors it: sometimes they coincide, sometimes not at all; sometimes everything has to be reformed, at the risk of a scandalous transformation; sometimes the reforms turn out to consist in dangerous innovations or even betrayals” Latour, 2013, p. 44). ↩︎
- Ver, por exemplo, Roudinesco (2022). ↩︎
- Para um exemplo, ver Preciado (2021) e as respostas a ele (Cavalheiro, Pombo & Triska, 2022). ↩︎
- Incidentalmente, determinados esses propósitos, eles se tornam passíveis de serem avaliados em sua eficácia. Muito diferente, portanto, das ideias de que “a psicanálise não tem objetivo”, “o psicanalista não quer nada”, etc. ↩︎
- Que eu chamaria de monismo naturalista, cuja versão mais contundente é encontrada em Laboria Cuboniks (2015). ↩︎
- Não que Hacking faça isso. Apenas achei expediente sua distinção entre realidade e racionalidade como abordagens da filosofia da ciência. ↩︎
- You can localize, historicize, anthropologize as much as you like, cultures, customs, technologies, even the sciences, if that appeals to you, but there is still an unchallengeable foundation, a flowing spring, a primordial origin, a cavity from which the self surges forth, everywhere and from the beginning, the indisputable ego, the common property of universal humanity. (Latour, 2013, p. 185) ↩︎
- Dito em termos mais abstratos: a teoria é desacoplada da prática. A realidade, para o praticante de psicanálise, não passa de uma questão “meramente teórica”. ↩︎
- Para um exemplo de positivismo lógico, ver Hahn et al. (1929) ↩︎
- Even the initial description of phenomena that are to be explained is—as we would say nowadays—theory-laden. Surely this is a quasi-Kantian theme, opposed to the theory-observation dichotomy characteristic of the early days of logical empiricism. As Freud put it: “Even at the stage of description, it is not possible to avoid applying certain abstract ideas to the material in hand, ideas derived from somewhere or other but certainly not from the new observations alone.” Indeed, he stresses that the ideas that become the basic theoretical concepts of the given science are—to use Poincare's locution—free creations of the human mind rather than Aristotelian-Thomist abstractions from sensory phenomena. Thus, he points out that these basic postulational concepts have “in fact... been imposed” on “the material of observation,” although they “appear to have been derived” from it. (Grunbaum, 1984, p. 42) ↩︎
- Sobre isso, recomendo fortemente o levantamento de Figueiredo (1991) sobre o romantismo em psicologia e, em particular, sua descrição da ciência goethiana. ↩︎
- Sobre o fracasso de Heidegger em abandonar sua nostalgia, ver Rorty (1989) ↩︎
- Para um exemplo contemporâneo disso, ver “a clínica do Real” (Forbes & Riolfi, 2014). ↩︎
- 'McCarthy quotes the passage containing Habermas's privileged access gambit without dissent and writes: “This peculiarity of psychoanalytic inquiry has implications for the logics of application, corroboration and explanation” (1978: 204). But since the alleged “peculiarity of psychoanalytic inquiry” was deduced by begging the question, the implications McCarthy claims to draw from the purported peculiarity are ill-founded. (Grunbaum, 1984, p. 25) ↩︎
- Ferramenta que utilizei para fazer um comentário parecido em https://gustavocosta.psc.br/resignarse-ao-real-lacan-e-o-fascinio-pelo-inefavel/ ↩︎
- Em uma apresentação que eu suponho que será publicada em breve em https://www.youtube.com/@APOLaInternacionalOnline/videos ↩︎
- Uso o nome dela como metonímia (como o estilo de Rorty). Eu li artigos de Orsi na Revista Questão de Ciência o bastante para afirmar com alguma segurança que o capítulo do livro sobre psicanálise foi escrito por ele. Algumas partes são, inclusive, copiadas diretamente do blog. Dado que eles são casados, imagino que eles não tenham opiniões especialmente diferentes sobre esse assunto. ↩︎
- Ou mesmo das complexidades de um trabalho científico bem feito, caracterizado por uma maior lentidão, atenção aos concernidos (Stengers, 2018) e assumindo sua posição (Haraway, 1991). ↩︎
- Bem... Ninguém que não esteja tentando te vender alguma coisa, ou te converter para uma religião. ↩︎
- Nem sobre o que é um “tratamento”, ou se deve-se “tratar”, ou o que é uma “pessoa”... Sobre isso, ver o último capítulo de Figueiredo (1991). ↩︎