Elisabeth & Elizabeth: a histeria é uma forma implícita de feminismo?

Orgulho e Preconceito (Austen, 2020/1813) acompanha Elizabeth “Lizzie” Bennet e suas 4 irmãs em busca de um marido, abordando questões relacionadas a moral e casamento. A geratriz do conflito central do livro (falo livro aqui, mas assisti só o filme de 2005) é o fato de como a propriedade do pai só poderia ser herdada por um filho homem, pelo menos uma das filhas deve se casar com alguém rico para conseguir sustentar as outras.

Antes da aquisição do direito à propriedade, o casamento era um problema existencial para a mulher da classe média (ou maior). Assim abre o romance: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa” (Austen, 2020/1813).  A ironia aqui é, claro, que quem tem essa necessidade são as mulheres, para que não sejam destituídas. [1]

O orgulho de Lizzie entra em jogo quando se recusa a casar com um homem que não gosta apesar de sua riqueza, o que salvaria a família da ruína após a eventual morte do pai; em vez disso, ela quer casar por amor. Lizzie encontra Darcy, um aristocrata metido, e os dois não se gostam. O “conflito” propriamente dito do romance é o desenvolvimento dessa relação. Com o tempo, eles abrem mão de seu orgulho e seu preconceito e descobrem que na verdade se amam e acabam se casando.

Esse casamento indica, além do desenvolvimento do caráter dos personagens, a recompensa de Lizzie por sua obstinação em casar por amor. Por completa coincidência, ela se apaixona por um grande ricaço, o que soluciona também o problema central de sua família. Seu objetivo individual acaba se alinhando com o interesse alheio [2]. O que aconteceria se não fosse esse o caso? Veremos com Elisabeth von R.

Há semelhanças óbvias e nem tão obvias entre o romance e os relatos de caso do Estudos Sobre a Histeria. A Wikipedia descreve Lizzie como “atraente, esperta e inteligente, apesar de ter uma tendência a primeiras impressões preconceituosas e tenazes” (“Pride and Prejudice”, n. d.). O artigo em português acrescenta que ela é sincera e não leva desaforo pra casa. (“Orgulho e Preconceito”, n. d.).

É assim que Freud apresenta Elisabeth:

“Assim se deu que ela se ligou de forma particularmente íntima ao pai alegre e conhecedor da vida, que costumava dizer que esta filha substituía para ele um filho e um amigo com quem podia trocar suas ideias. A despeito do quanto ela ganhasse em estímulo intelectual nessa relação, não escapava ao pai que, com isso, sua constituição espiritual se distanciava do ideal que se aprecia ver realizado numa menina. Brincando, chamava-a de "atrevida e teimosa", alertava-a para a certeza demasiado incisiva em seus julgamentos, para sua inclinação a dizer brutalmente a verdade às pessoas e muitas vezes considerava que ela teria dificuldade de encontrar um marido. De fato, Elisabeth se sentia bastante insatisfeita com sua condição de menina, era cheia de planos ambiciosos, queria estudar ou formar-se em música e indignava-se com a ideia de ter que sacrificar suas inclinações e sua liberdade de opinião num casamento” (Freud, 2016, p. 201).

Esse paralelo nos direciona a uma análise do caso pela via da afirmação de que “a histeria é uma forma implícita de feminismo” (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 16). Não com uma perspectiva externa, mas como uma análise fiel à teoria lacaniana da histeria, tocando na questão fundamental da diferença sexual, passando por conceitos como Real, impossível, gozo feminino, demanda e desejo.

A leitura de Lacan do caso Dora substitui a referência a uma disposição orgânica da interpretação freudiana por uma referência à estrutura. Influenciado pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss, o problema seria a “incapacidade de assumir o papel de objeto de troca prescrito pela estrutura da sociedade humana” (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 104).

“Frau K. se mostra, para Dora, como alguém que seu pai pode amar, para além de Dora. Para Dora, Frau K. é a encarnação do que significa ser uma mulher. O que meu pai, apesar do meu compromisso e amor altruísta, ama em Frau K.? O que é uma mulher?” (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 110).

Lacan fala em termos de uma paixão homossexual (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 114). Eu não colocaria nos termos de homossexualidade, porque acho que isso ainda induz a uma leitura de sexualidade em um sentido restrito. Em vez de pensar em Dora como identificada com o objeto de desejo do seu pai ou com uma paixão homossexual, podemos pensar que o pai de Dora tem como função, nessa estrutura, designar a mulher com o seu desejo. Assim, ele pode ser abstraído da questão. O que se coloca aqui é o problema da diferença sexual:

“A diferença sexual é uma diferença interna entre a existência e aquilo que tal existência nega como inexistente para poder existir." (Safatle, 2020, p. 79)

A organização social indica que o impossível para Elisabeth era que uma mulher tivesse ambições, que Lizzie ou suas irmãs se preocupassem com qualquer coisa que não o casamento. Em ambos os casos, essas condições de possibilidade são determinadas pela organização socioeconômica da época.

O que é a diferença sexual? Para além da angústia de castração e/ou complexo de édipo e sua epistemologia psicogênico-naturalista (Preciado, 2019), é possível entender a diferença sexual como relacionada à tomada de posição na sociedade, mesmo que seja uma posição de objeto de troca. O que parece estar em jogo na histeria, na perspectiva que nos é dada por Elisabeth e Elizabeth, é a produção de um sintoma que funciona como compromisso entre adesão e insatisfação com a posição que lhes foi designada socialmente.

O que é suprimido nesse cenário vitoriano não é necessariamente a sexualidade, no sentido de que “nessa época o sexo era tabu”, mas a iniciativa de ocupação de qualquer posição em relação ao Outro que não seja a preestabelecida.  E a disponibilidade de posições, principalmente para uma mulher, é bastante reduzida. Assim, o entendimento da sexualidade é ampliado a todo tipo de investimento. O que está em jogo aí é o conflito entre o que é permitido investir e o que é esperado socialmente. Em termos lacanianos, um conflito entre demanda e desejo (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 121) ou entre gozo fálico e gozo feminino.

Quando Lacan fala da questão de ser um objeto de troca no drama da diferença sexual, não é sobre ser homem ou mulher, ter pênis ou não, mas as posições estruturais que esses significantes determinam. Entender essa passagem lacaniana como referente a um binarismo orgânico é inadequado, porque a filosofia implícita em seu pensamento é a de que

“só o homem existe, só o modo masculino de organização da libido define a integralidade do campo de inscrição social do gozo no interior de nossas sociedades. . . . [a alternativa é] algo que deve ser compreendido como impossível e inexistente em nossa situação social, a saber, uma forma de gozo não fálica.” (Safatle, 2020, p. 61)

Se entendida não como uma patologia, mas uma manifestação de um drama comum, a histeria demonstra os limites da sociedade em que emerge. Entendida não como um romance familiar em que uma filha se identifica com o pai e isso prejudica seu desenvolvimento feminino normal, mas como um problema justamente pelo fato do pai de Elisabeth dizer que ela terá dificuldade em encontrar um marido por ter características que não são tipicamente femininas. A questão não é o fato de isso ser dito, mas que ele é levado a dizê-lo, que ele não está errado em dizê-lo. O que pode ser observado aqui é uma tentativa de construção de um gozo não fálico ou feminino em resposta a essa demanda.

“O que o gozo feminino mostra é como é possível começar não exatamente da afirmação da castração como função de um “para todos” que constitui uma universalidade normativa e restritiva, mas começar da castração como impasse de existência, como pressão de um inexistente em direção a uma existência outra.” (Safatle, 2020, p. 82).

Ela o fala com todas as letras. Não precisa ser penetrada pela escavação (Freud, 2016, p. 203) pois está na superfície:

“À pergunta sobre o que, nesse passeio, poderia ter provocado as dores, obtive a resposta, não de todo transparente, de que lhe fora doloroso o contraste entre seu isolamento e a felicidade conjugal da irmã doente, que a conduta de seu cunhado não cessava de evidenciar ante seus olhos.” (Freud, 2016, p. 217)
“A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho se relaciona mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.” (Austen, 2020/1813)

Elisabeth oscila entre viver sua individualidade e satisfazer ao outro. Cuidou do pai antes dele morrer, cuidou da mãe quando teve que fazer sua cirurgia, “vivia orgulhosa do pai, do prestígio e posição social da família, e cuidava zelosamente de tudo o que se ligava a esses bens” (Freud, 2016, p. 201). Não aceitava o mau-caratismo do marido da irmã mais velha, mas o crime em que ela passa a não perdoar mais a irmã em se abster (devido a sua docilidade feminina) foi quando ele passou a “negligenciar a deferência à velha senhora”. (p. 203).

O único sujeito que parece não ter desapontado as expectativas de Elisabeth sobre o que seria ser uma mulher foi, claro, o irmão da outra irmã:

“O casamento da segunda irmã pareceu prometer algo de mais venturoso para o futuro da família, pois esse cunhado, embora intelectualmente menos dotado, era um homem conforme ao coração daquelas mulheres de fina sensibilidade, educadas no cuidado a todas as atenções, e seu comportamento reconciliou Elisabeth com a instituição do casamento” (Freud, 2016, p. 203).

Ele também, notavelmente, se dava bem com sua mãe (p. 204). Para que ela se apaixonasse, então, era necessário que o sujeito fosse, como dizem, um grande respeitador de mulheres. Encontrar um homem diferente seria uma saída possível dentro da ordem fálica do casamento. Ainda assim, Freud insiste em descrevê-la como carente de amor:

“Esta era, portanto, a história da doença da jovem ambiciosa e carente de amor. Irritada com seu destino, amargurada com o fracasso de todos os seus pequenos planos de restabelecer o esplendor da casa - as pessoas que amava, mortas, distantes ou afastadas -, sem inclinação a buscar refúgio no amor de um homem desconhecido, ela vivia desde um ano e meio dos cuidados com sua mãe e suas dores, quase apartada de todo contato social.” (Freud, 2016, p. 206).

O que não é uma descrição inadequada, mas é uma carência e um amor diferentes que o de sua mãe ou de sua irmã. Ela não queria o cunhado. Ela tinha ânsia de amor. Ela queria amar e ser amada, apesar da evidente falta de esperança em relação ao que a organização fálica tem a oferecer. É o casamento que a interessa, não o homem:

“Sua desesperança final, como moça solitária, de desfrutar algo da vida ou nela poder realizar alguma coisa. Até então, ela se sentira forte o bastante para poder prescindir da ajuda de um homem; agora se apoderava dela um sentimento de fragilidade como mulher, uma ânsia de amor na qual, conforme suas próprias palavras, seu rígido ser começava a se derreter. Em tal disposição, o casamento feliz de sua irmã mais nova causou-lhe a mais profunda impressão: como ele cuidava dela de modo enternecedor, como eles se entendiam com um olhar, como pareciam estar seguros um do outro.” (Freud, 2016, p. 223)

Paralelamente, Austen:

"How despicably have I acted!" she cried; "I, who have prided myself on my discernment! I, who have valued myself on my abilities! who have often disdained the generous candour of my sister, and gratified my vanity in useless or blameable distrust. How humiliating is this discovery! yet, how just a humiliation! Had I been in love, I could not have been more wretchedly blind. But vanity, not love, has been my folly. Pleased with the preference of one, and offended by the neglect of the other, on the very beginning of our acquaintance, I have courted prepossession and ignorance, and driven reason away, where either were concerned. Till this moment I never knew myself.” (“Pride and Prejudice”, n. d.).

Elisabeth se apaixona por seu cunhado. Como Bennet, ela tem uma irmã que se casa, que funciona exatamente como a foi designado, uma mulher de verdade. Alguém que tem algo que atrai o homem, que é quem está disponível socialmente para ser amado por uma mulher.


A histeria era o Real batendo na porta. Real que

“diz respeito a um campo de experiências que não podem ser adequadamente simbolizadas ou colonizadas por imagens ideais de forte circulação social. . . . O Real indica uma experiência de exterioridade em relação aos processos de reprodução material da vida e que preserva sua negatividade como forma de impedir que experiências de diferença sejam esmagadas pelas determinações possíveis do presente. (Safatle, 2020, p. 65)”

Se o drama da histeria é precisar manter distantes demanda e desejo (Van Haute & Geyskens, 2016, p. 121), protege-se o desejo de ser esmagado pela demanda de ser um objeto de troca no jogo civilizacional ao construir um sintoma histérico. É compreensível, então, a maneira com que ela se apresenta para Freud [3]:

Durante esse primeiro período do tratamento, a doente jamais deixou de repetir ao médico: "Mas continuo me sentindo mal, tenho as mesmas dores de antes", e quando me olhava então com astuciosa malícia, eu bem podia me lembrar do juízo que o velho sr. v. R . . . proferia sobre sua filha predileta: ela era com frequência "atrevida" e "malcomportada"; no entanto, eu tinha que admitir que ela estava com a razão. (Freud, 2016, p. 208).

Me parece uma mulher desesperada em demonstrar sua diferença. Sua incomensurabilidade pelo mundo, sua incapacidade de ser devorada pela civilização. Ao se manter insatisfeita, ela realiza sua inserção na ordem simbólica.

A histeria é uma forma de invocação do gozo feminino. É conseguir imaginar uma alternativa à estrutura tal qual ela se apresenta, apesar da ambivalência de também querer ser integrado a ela. Evidentemente, a Srta. Von R. não estava tentando “revolucionar o mundo” ao achar um marido decente, mas estava apostando na possibilidade de uma existência outra.


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Referências

Austen, J. (2020). Orgulho e Preconceito [e-book]. Martin Claret. Original publicado em 1813.

Freud, S. (2016). Obras Completas, Volume 2: Estudos sobre a histeria (1893-I895) em coautoria com Josef Breuer. São Paulo: Companhia das Letras.

Orgulho e Preconceito. (n. d.). In Wikipedia. Acessado Abril 6, 2021, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Orgulho_e_Preconceito

Preciado, P. (2019). Um apartamento em Urano (Conferência) [Trad. C. Q. Kushnir & P. S. Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, 8, p. 12. Disponível em: https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-12/

Pride and Prejudice. (n. d.). In Wikipedia. Acessado Abril 6, 2021, em https://en.wikipedia.org/wiki/Pride_and_Prejudice

Safatle, V. (2020). Maneiras de Transformar Mundos: Lacan, política e emancipação. Belo Horizonte: Autêntica.

Van Haute, P. & Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Belo Horizonte: Autêntica.

Notas

1 “Inheritance laws benefited males because most women did not have independent legal rights until the second half of the 19th century and women's financial security depended on men. For the upper-middle and aristocratic classes, marriage to a man with a reliable income was almost the only route to security for the woman and the children she was to have. The irony of the opening line is that generally within this society it would be a woman who would be looking for a wealthy husband to have a prosperous life. (Wikipedia)

2 “One critic, Mary Poovey, wrote that the ‘romantic conclusion’ of Pride and Prejudice is an attempt to hedge the conflict between the ‘individualistic perspective inherent in the bourgeois value system and the authoritarian hierarchy retained from traditional, paternalistic society’.” (Wikipedia)

3 E como ele entra facilmente em tal proposta de relação, não deixando de ser um homem de sua época: “Algumas vezes, seu comportamento era tudo o que eu poderia desejar” (p. 220) e “Não mais aceitava, quando ela afirmava que nada lhe ocorrera. . . . sua obrigação era manter-se inteiramente objetiva e dizer o que lhe vinha à mente, conviesse ou não.” (p. 221).