Espetáculo lacaniano: transferência x realidade

Espetáculo lacaniano: transferência x realidade

Lacan, em 1964, em seu 11º seminário, tenta reformular os conceitos fundamentais da psicanálise. Nos capítulos 10 e 11, para definir o conceito de transferência, ele entra em diálogo com o artigo The Concept of Transference (Szasz, 1963). Nesse texto, o autor define transferência em oposição à realidade.

Uma das primeiras questões que se apresentam, ao falar de transferência, é se ela é um fenômeno que ocorre apenas na situação analítica ou se ela é um fenômeno geral, do qual a análise se utiliza. Lacan concorda com Szasz neste ponto. Para ambos, a transferência é um fenômeno geral, em que a situação analítica é como um laboratório em que se pode manipulá-la com mais precisão (Lacan, S11, p. 125), aonde ela pode ser analisada em vez de atuada.

Isso diverge de outros autores citados no artigo, como Macalpine, Menninger e Waelder, que entendem a transferência como um fenômeno exclusivo do enquadre analítico. Esses autores definem a transferência como repetição de experiências da infância, reviver as relações parentais, situação de regressão, etc; por esses motivos, caracterizam ela como não-realista, como ilusão.

Lacan discorda veementemente dessa posição, afirmando que a transferência não é apenas uma ilusão que seria desfeita pelo analista. Entendida dessa forma, a transferência colocaria o analista como juiz, júri e executor da realidade. Em seu lugar, Lacan defende o desejo em função do Real singular de cada sujeito.

Transferência em Lacan, ou comprovando que eu li Lacan em alguma medida

Se, em Szasz, transferência é intimamente relacionada a ilusão e fantasia, em Lacan ela é associada a desejo e amor. O que não quer dizer que a transferência seja um afeto, como o amor ou o ódio: ele afirma que ela pode ser entendida como uma predisposição a amar ou odiar; uma atitude ou condicionamento da percepção (S11).

Outra maneira como Lacan define a transferência é como modo de acesso ao que está escondido no inconsciente:

Apelar a alguma parte saudável do sujeito que se pensa estar lá no real, capaz de julgar com o analista o que está acontecendo na transferência, é não entender que é justamente essa parte que se ocupa da transferência, que é essa parte que fecha a porta, ou a janela, ou as venezianas, ou o que quer que seja – e que a bela com quem se deseja falar está lá, atrás, disposta a abrir as venezianas novamente. É por isso que é neste momento que a interpretação se torna decisiva, pois é à bela que se deve falar. (Lacan, S11, p. 131)
transferência – como nos é representada, como modo de acesso ao que está oculto no inconsciente (Lacan, S11, p. 143)

O que o psicólogo do ego perderia de vista, então, é que o inconsciente se abre quando se fecha; que não é sobre trazer à consciência, mas conversar com aquilo que se escondeu, que se revela por sua ausência. Não é o ego ou a consciência que estão em questão: Lacan diz focar no a em vez do i(a). Como parte de sua reformulação dos conceitos freudianos, ele recusa o ego como ponto de referência. Em vez disso, propõe um discurso do Outro que vem de fora, o inconsciente que não é substancial, etc.

Em vez de se filiar à psicologia, em que se define a realidade por meio da validade de testes (S11, p. 142), Lacan tenta refundar a psicanálise na imagem do Outro como discurso preexistente. Como a dimensão simbólica sobredetermina a existência do sujeito, o desejo é o desejo do Outro. Se se trata de uma ficção, é uma ficção escrita para alguém; sonhos são construídos para serem entendidos. Ainda assim, a questão que se apresenta é (Lacan, S8): porque o sujeito repete sempre as mesmas significações? Se transferência for apenas repetição, seria a repetição da mesma coisa, do mesmo encontro perdido, porque a repetição sempre se refere ao objeto a, à tiquê como encontro com o real (Lacan, S11).

Para Lacan, a transferência não se direciona ao Bem, à adaptação, à natureza, à beleza, etc., mas ao Eros, a um objeto, etc. A reedição da relação com os pais é tomada como metonímia com o objeto a, que é assumido como interior à pessoa a quem se dirige, como agalma (S8). Tal objeto define a fantasia fundamental, que informa seu desejo. Para além da intersubjetividade, ela se referencia ao Outro, ao sentido, à enunciação.

Essa questão se associa com outra afirmação lacaniana: a de que o Real não é o mundo (Lacan, 1974, p. 61); não é reencontrar a essência (Lacan, S11, p. 47), o núcleo saudável do sujeito no mar de ilusões. É falar com aquilo de menos saudável, menos natural, mas mais verdadeiro, mais Real. É reconhecer os absurdos que não deixam de ser realidade – são, na verdade, sua parte mais importante.

Transferência em Szasz

O perigo freudiano

The Concept of Transference foi um dos primeiros textos escritos por Szasz, que publicou dezenas de livros até a sua morte, em 2012. Ele passou o resto da vida se dedicando a criticar a psiquiatria, publicando livros com nomes como “Escravidão Psiquiátrica”, “A Teologia da Medicina” e “O Mito da Doença Mental”. Ele insistiu no caráter metafórico das doenças mentais e na psiquiatria como uma secularização do controle religioso na sociedade. Mesmo sua morte foi de suicídio, pauta que defendeu em sua obra.1

Isso não é evidência de nada, mas me parece improvável que um sujeito que não tem pudor em comparar a psiquiatria à escravidão seja, como sugere Lacan, apenas um terapeuta ortopédico adaptador (S11, p. 135).

Para Szasz (1963), transferência e realidade não são descrições de comportamento, mas avaliações. Um evento é julgado como transferencial se ele fizer referência a “objetos da infância, defletidos ao analista ou a outras figuras” (p. 434); sua contrapartida são “comportamentos adaptados à realidade”, que seriam reações adequadas às situações da vida. Linguagem assustadora!

A questão de Szasz é ilustrada por uma citação que ele faz de Fenichel:

Nem tudo é transferência que é vivenciado por um paciente na forma de afetos e impulsos durante o curso de um tratamento analítico. Se a análise parece não progredir, o paciente tem, a meu ver, o direito de estar com raiva, e sua raiva não precisa ser uma transferência da infância – ou melhor, não conseguiremos demonstrar o componente transferencial nela (Fenichel apud Szasz, p. 434)

Mesmo que o terapeuta acredite, com todas as suas forças, que tal ou qual atitude do paciente seja transferencial, ele é incapaz de demonstrá-lo. Essa impossibilidade de que a psicoterapia seja verificada gera um grande risco: que o analista abuse de seu poder – não aja com integridade –, decidindo o que é verdade e o que não é.

Em primeiro lugar, não foi precisamente isso que Freud fez? Segundo Heaton (2010), “em vez de deixar a própria linguagem do paciente deixar claro como ela significa ou não, ele usou suas próprias ideias e linguagem para dizer como as coisas ‘realmente’ são” (p. 1). Como ficaria o “retorno a Freud”, nesse contexto?

Em segundo lugar: não era essa a crítica de Lacan ao texto de Szasz, de que ele seria juiz da realidade de seus pacientes?

Desfazendo o terror

Segundo Szasz, essa situação é produzida pelo próprio conceito de transferência. A transferência é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade da psicanálise e o seu maior fator de risco. Isso ocorre porque ela funciona como uma defesa para a pessoa do analista.

Essa questão remete aos princípios da psicanálise: como Breuer se sentiu afetado demais por Anna O. para tratá-la, foi necessário que houvesse alguma distância para que o tratamento tivesse alguma eficácia. Inicialmente, isso se realizou de maneira fortuita, com Freud observando o caso de longe. Posteriormente, ele replicou essa distância por meio da contraposição entre transferência e realidade. Assim, como os sentimentos do paciente tem origem em sua doença, eles seriam falsos, ilusórios.2 Assim, o analista não precisa se preocupar com a carga de afeto direcionada a ele (Szasz, 1963).

Com esse elemento pessoal mitigado, o terapeuta se torna um símbolo, mais do que de uma pessoa. Isso, ao mesmo tempo que possibilita o tratamento, o impede:

O que distingue a relação analítica de todas as outras é que tanto o paciente quanto o analista devem fazer de sua relação um com o outro um objeto de exame científico. […] A situação analítica é, portanto, um paradoxo: estimula e ao mesmo tempo frustra o desenvolvimento de uma intensa relação humana. (Szasz, 1963, p. 437)

Aqui vemos outro ponto caro para Szasz: o objetivo da relação analítica é o estudo da relação em si. Em seus próprios termos:

Colocado em termos de relações objetais, poderíamos dizer que a tarefa do paciente é discriminar entre o analista como objeto interno e como objeto externo. Objetos internos podem ser tratados apenas por defesas intrapsíquicas; eles podem ser domados, mas não mudados. Para alterá-los, é necessário reconhecer a existência psicológica de objetos internos por seus efeitos sobre objetos reais, externos. Isso só pode ser realizado no contexto de um relacionamento humano real. A relação analítica – que permite ao paciente investir o analista com qualidades humanas emprestadas de outros, mas que o analista não aceita nem rejeita, mas apenas interpreta – é assim projetada para ajudar o paciente a aprender sobre seus objetos internos. Esse tipo de aprendizado psicoterapêutico deve ser diferenciado de outras experiências de aprendizado, como sugestão ou imitação. Somente uma teoria baseada no modelo educacional pode acomodar o papel da transferência no tratamento psicanalítico. (Szasz, 1963, p. 435)

Podemos ver mais elementos espantosos da perspectiva de Szasz: “objeto de exame científico” (a psicanálise é uma vivência, não um experimento!), “aprendizado psicoterapêutico” (a psicanálise não é um autoconhecimento, muito menos uma pedagogia!), etc.

Mais espantosa ainda é a frase, “comportamento adaptado à realidade”, citada anteriormente. O que será que isso significa?

O fato é que o julgamento do analista sobre se o comportamento do paciente é ou não transferencial pode ser validado pelo paciente; e, inversamente, a experiência e o autojulgamento do paciente podem ser validados pelo analista. Vamos rever brevemente o que esse processo de validação cruzada pode implicar. Repetindo, nossa premissa é que o termo “transferência” expressa um julgamento – formado pelo terapeuta ou pelo paciente – sobre alguns aspectos do comportamento do paciente. Assim, a ação ou sentimento de um paciente pode ser julgado como: (1) transferência – se for considerada uma expressão de interesse “basicamente” dirigida a objetos da infância, desviada para o analista ou para outras figuras da vida atual do paciente; (2) comportamento adaptado à realidade – se for considerado um sentimento válido ou uma reação à pessoa a quem é dirigido. (Szasz, 1963, p. 434)

Szasz enumera as situações que podem acontecer, em que um ou outro participante acreditam ou não. Quando ambos concordam, a interpretação de transferência é possível; quando só o analista acha que é transferência (ainda reservando a possibilidade e que ele esteja enganado), a interpretação não é possível; raramente, acontece do paciente entender algo como transferência enquanto o analista não, como quando o paciente está apenas testando o analista; quando ambos concordam que o comportamento é “orientado à realidade”, não é necessário analisá-lo.

A situação que envolve mais perigo é quando o analista acredita que é transferência mas o paciente acredita que é realidade3. Szasz afirma que aqui não é possível realizar interpretação de transferência. Fazê-lo seria não só incorreto moralmente (“autocrático”), mas segundo esse conceito de transferência, também seria epistemologicamente impróprio.

Essa ideia de um comportamento adaptado à realidade é uma versão daquilo que Fenichel chama de raiva justificada. Se o paciente não entende uma manifestação como transferencial, não há nada que o analista possa fazer para persuadi-lo. Certos materiais não precisam – ou podem – ser analisados. O conceito de comportamento adaptado protege o paciente da iatrogenia do terapeuta que quer impor sobre ele a sua realidade psicanalítica, na qual ele seria capaz de explicar tudo.

Para lidar com o perigo inerente ao definir o discurso do paciente como ilusório, o autor propõe uma dinâmica de validação cruzada entre os julgamentos do paciente e do analista sobre a situação. Ambos teriam que concordar que certo comportamento é transferencial para que ele possa ser analisado. Não basta que o analista interprete algo e acuse o paciente de resistência. O paciente também é capaz de perceber a falta de realidade em si.

O paciente analítico pode sentir – com ou sem que o analista o diga – que seu amor pelo terapeuta é exagerado; ou que esse ódio por ele é muito intenso; ou que sua ansiedade sobre a saúde do terapeuta é injustificada. Em resumo, o paciente pode estar ciente de que o terapeuta é “importante demais” para ele. Esse fenômeno é o que entendo por transferência como experiência e como autojulgamento. (Szasz, 1663, p. 434)

Assim, a oposição transferência-realidade no texto de Szasz não só se encontra protegida do maior risco que se produz em uma disciplina como a psicanálise – o abuso de poder por parte do analista ao assumir que ele sabe mais sobre o analisante do que ele mesmo – mas é ela que cria esse anteparo. Esse perigo não é contingente, mas indissociável da clínica psicanalítica em si, tendo em vista que a blindagem do analista produzido pela própria noção de transferência foi um dos fatores centrais na criação da disciplina.

Outras abordagens da psicologia lidam com isso de outras formas. A terapia fenomenológica, por exemplo, diz que não introduz teoria ou sentido algum para além daqueles que o paciente traz(Evangelista, 2016, p. 44). Ela se recusa a entreter o princípio fundamental da prática psicanalítica, que é assumir estados internos que justifiquem estados externos do paciente; inclusive, ela se constitui justamente para se contrapor a esse princípio psicanalítico (p. 52). Essa questão é – ou deveria ser – não só central para a psicanálise, como para todas as psicoterapias.

Em resumo

Realidade e transferência são julgamentos subjetivos e não descrições objetivas;

A transferência defende o analista do afeto que lhe é direcionado, sendo tal propriedade necessária para a criação da psicanálise;

Há um risco implícito nessa defesa ao capacitar o analista a julgar o que é real e o que não é. O foco de Szasz é em como mitigar tal risco;

Para isso, ele propõe uma validação cruzada: o paciente informado de seus objetos internos e o analista como parte necessária da relação. Os dois podem julgar algo como transferencial e portanto, investigá-lo;

Como o paciente precisa fazer tal julgamento, a análise tem uma função pedagógica de ensinar o paciente a avaliar algo como transferencial em vez de real;

Assim, pode-se executar o objetivo da análise, que é entendido como a diferenciação entre o analista como objeto simbólico e o analista como pessoa. Com isso, o paciente se torna consciente de seus objetos internos.

Em contraste, outro resumo, também seguindo o estilo de seu autor, e a título de perfomance, porque não tenho expectativa nenhuma que você leia isso:

A presença do passado, portanto, tal é a realidade da transferência. (S8, p. 149)
A realidade do inconsciente é a realidade sexual — uma verdade insustentável. (S11, p. 150)
A transferência é a encenação da realidade, do inconsciente. O que está implícito aqui é precisamente o que mais se tende a evitar na análise da transferência. (S11, p. 149)
você verá a função da transferência formulada como meio de retificação do ponto de vista da realidade, à qual tudo o que estou dizendo hoje se opõe. (S11, p. 146)
essa posição primária do inconsciente que se articula como constituída pela indeterminação do sujeito – é a ela que a transferência nos dá acesso (S11, p. 129)
Ainda que devamos considerar a transferência como produto da situação analítica, podemos dizer que essa situação não pode criar o fenômeno em sua totalidade (S11, p. 124).
o conceito de repetição nada tem a ver com o conceito de transferência (S11, p. 33)
Se a transferência é apenas repetição, será sempre repetição do mesmo encontro perdido (S11, p. 143)
a transferência, em última análise, é o automatismo de repetição. (S8, p. 149)

O espetáculo lacaniano

“Autocrático”

Superficialmente, o que se apresenta é isso: há comportamentos corretos, adaptados a realidade, e há comportamentos incorretos, que são orientados por desejos infantis. Esses segundos devem ser tratados por meio da fala antes mesmo que aconteçam. Nesse sentido, seria uma teoria normativa. Vimos, no entanto, e um tanto ironicamente, que tal conceito de transferência tem como função defender o paciente de certas iatrogenias produzidas pelos preceitos fundamentais da psicanálise. O que Lacan diz sobre isso?

Mas quando se trata de qualificar o comportamento de um paciente como desfavorável ao analista, você tem duas opções, diz Szasz — “a visão do analista está correta e é considerada a ‘realidade’; a visão do paciente está incorreta e é considerada ‘transferência’.” Isso nos traz de volta àquele pólo ao mesmo tempo mítico e idealizador que Szasz chama de integridade do analista. O que isso pode significar, se não é uma recordação à dimensão da verdade? (Lacan, S11, p. 136)

Nada, é claro. Expandindo um pouco a citação que ele faz:

Nesses casos há um conflito de opinião entre paciente e médico, que não se resolve pelo exame do mérito das duas visões, mas pelo julgamento autocrático do médico: sua visão é correta, e é considerada ‘realidade’; a visão do paciente é incorreta, e é considerada ‘transferência’. (Szasz, 1963, p. 432)

Como vimos, a questão de Szasz é como abordar esse conflito de opinião que, para ele, impede que haja interpretação.

O uso do conceito de transferência na psicoterapia levou, assim, a dois resultados diferentes. Por um lado, possibilitou ao analista trabalhar onde de outra forma não poderia ter trabalhado; por outro, expunha-o ao perigo de estar ‘errado’ em relação ao paciente – e de abusar da relação analítica – sem que ninguém pudesse demonstrar isso a ele. (Szasz, 1963, p. 442)

É em função dessa questão da demonstração, creio eu, que Lacan o acusa de “positivismo lógico”. Segundo a Wikipédia, positivismo lógico, também chamado de verificacionismo, é uma filosofia que se ambicionava científica, ao restringir a validade do conhecimento somente a afirmações lógicas ou observáveis. Dito de outra forma, o positivista lógico recusa afirmações que não são demonstráveis.4

Como vimos, Szasz se preocupa com a questão da verificação como uma forma de manter a integridade do analista. Lacan o critica pela “ausência da dimensão da verdade” (sempre presente no discurso, mesmo na mentira5). Presumivelmente, tal dimensão da verdade seria a alternativa de Lacan para impedir o abuso de poder do analista. Em vez de integridade, bastaria o analista se orientar pelo Real, que nunca muda. Contra o inverificável da situação analítica, outro inverificável: a verdade dissimétrica da falsidade, sempre presente na enunciação.

Quando Lacan critica a afirmação de que a transferência coloca o analista além do teste de realidade por parte dos colegas – demonstração, verificacionismo –, ele perde de vista o que esse teste significa. O abuso que Szasz aponta é precisamente a possibilidade de o analista nunca estar errado, sempre colocando culpa no paciente.

“Adaptação”

Repetindo, nossa premissa é que o termo “transferência” expressa um julgamento – formado pelo terapeuta ou pelo paciente – sobre alguns aspectos do comportamento do paciente. Assim, a ação ou sentimento de um paciente pode ser julgado como: (1) transferência – se for considerada uma expressão de interesse “basicamente” dirigida a objetos da infância, desviada para o analista ou para outras figuras da vida atual do paciente; (2) comportamento adaptado à realidade – se for considerado um sentimento válido ou uma reação à pessoa a quem é dirigido. (Szasz, 1963, p. 434)

A ideia de comportamento adaptativo traz em si seu próprio risco. Contudo, tenho minhas dúvidas da inocência de um sujeito que passou a vida tentando explodir a psiquiatria.

A reação lacaniana anti-adaptação ignora a vantagem do conceito de adaptação: reconhecer que nem tudo precisa ser analisado. Mesmo sem entrar no mérito de que o analista possa estar simplesmente errado em seu julgamento, certos comportamentos não precisam ser analisados por não fazerem referência a fantasias inconscientes. Dito de outra forma, nem todo evento, para ser explicado, necessita presumir motivações inconscientes – a operação psicanalítica por excelência.6 Existem várias maneiras de explicar as coisas e a psicanalítica não será sempre a melhor.

Isso, de fato, aponta a uma divergência fundamental: para Lacan, toda a realidade é, em alguma medida, fantasiosa. Ele sabe que afirmá-lo seria problemático; portanto, o endereça falando que “a vida não é um sonho” (S11, p. 53). Ela não é um sonho, mas a transferência (que, lembremos, não é apenas um conceito operacional) é a manifestação, na realidade, da verdade sexual do inconsciente.

As ideias de mundo, vida e realidade são correlacionadas. Ao contrário do Real, “o mundo é o que funciona” (Lacan, 1974, p. 61), mas o funcionamento já é um tipo de projeção subjetiva, uma sobredeterminação pelo discurso do Outro. O caráter de realidade da alucinação vem do desejo (S11, p. 155), a transferência revela o peso da realidade sexual (p. 155), e a transferência não é um fenômeno restrito à análise (S11). Não seria um grande salto afirmar que toda realidade subjetiva seja uma alucinação, já que é orientada pelo desejo de cada um.

Disso, tiramos uma conclusão importante: tudo está sob a égide da psicanálise; tudo pode ser analisado. Como todos os eventos humanos se referem, em última instância, ao objeto a, à realidade sexual do inconsciente, a explicação psicanalítica nunca está fora de contexto. É o contrário do que faz a ideia de adaptação, que restringe a área de atuação do analista a apenas aquilo que é transferencial – e esse contexto só se constrói na medida em que o analista e o paciente concordem na “transferencialidade” da situação.

Nessa perspectiva lacaniana, a abordagem de Szasz nunca seria uma análise propriamente dita, ficando relegada à terapia: lidar com aquilo que o paciente julga inadequado, a demanda que ele consegue formular conscientemente, herdando os benefícios e os malefícios de uma “mera terapia”.

Não tenho ilusões de que a psicanálise de Szasz seja ilimitada. Para ele, o paciente precisa perceber que certas coisas são “transferenciais”, ou seja, ele precisa reconhecer as repetições infantis em seu comportamento. Para que a interpretação da transferência seja possível, o paciente precisa, em algum nível, comprar as explicações psicanalíticas. Há um risco aqui também, de forma que ele chega a afirmar que o aprendizado psicoterapêutico precisa ser distinguido de outros tipos de aprendizado, como a sugestão(1963, p. 435). Ele não nos dá indicação de como fazê-lo, suspeito eu, porque é uma tarefa impossível.

Isso dá à análise um certo tom pedagógico, em que o analista psicoeduca o paciente a reconhecer seus objetos internos. Somente depois que o paciente acreditar no inconsciente será possível empreender uma análise propriamente dita.

Lacan, por outro lado, não depende de tal realidade, amarrando seu burro no Real. Conceito que, por definição, não se presta a esse jogo cooperativo de descobrimento. No entanto, está ausente a proteção do “consentimento” do paciente, reintroduzindo o problema do abuso de poder: qualquer coisa pode ser “o Real” ao qual o paciente tem que “se acostumar” (Lacan, 1974, p. 77).

O que é que pode mesmo, para o analista, ratificar no sujeito o que se passa no inconsciente? Freud, para localizar a verdade – eu mostrei a vocês quando estudei as formações do inconsciente – se remete a uma certa escansão significante. O que justifica essa confiança é uma referência ao real. (Lacan, S11, p. 43).

Estando, agora, informados da ameaça fundamental da psicanálise – o perigo freudiano -- essa afirmação de Lacan, em que o analista está em posição de localizar a verdade, de decidir o verdadeiro no discurso de alguém, deve chamar nossa atenção.

A única situação em que uma afirmação como essa procede é quando se tem certeza da Verdade; caso em que se tornaria uma questão de acostumar-se com ela, em vez de entendê-la como efeito contingente de um discurso. Para o psicanalista, é claro, o Real não é arbitrário – ele é aquilo que é menos arbitrário. Assim, Lacan mantém sua fidelidade a Freud ao afirmar que a questão da psicanálise é acessar a verdade por meio de um método.

“Integridade”

Outra crítica que Lacan faz a Szasz é em seu uso da palavra “integridade”. Quando ele o faz, parece que Szasz está defendendo que a formação na IPA – que “excomungou” Lacan, conforme afirmado no primeiro capítulo – seria garantia dessa integridade.

Se concordamos que existe tal erro inerente à psicanálise — e é difícil ver como alguém poderia contestá-lo hoje —, cabe a nós tentar corrigi-lo. É claro que houve muitas sugestões, começando com a proposta de Freud de que os analistas deveriam passar por uma análise pessoal e terminando com a ênfase atual nos chamados altos padrões nos institutos analíticos. Tudo isso é inútil. Ninguém, incluindo psicanalistas, ainda descobriu um método para fazer as pessoas se comportarem com integridade quando ninguém está olhando. No entanto, esse é o tipo de integridade que o trabalho analítico exige do analista. (Szasz, 1963, p. 442)

A palavra integridade comparece três vezes no artigo: duas vezes nesse parágrafo, último do texto, e uma na página seguinte, em que Szasz resume essa seção. Ele, em nenhum momento, tenta explicar o que essa integridade significa.

Isso não é um ponto trivial do texto, mas sua conclusão. O objetivo do artigo é discutir o perigo da maneira como a definição de transferência como “externalização dos objetos libidinais” em contraposição à realidade costuma ser “repetida sem crítica” (Szasz, 1963, p. 432). Todo o problema da transferência é que essa questão nunca foi resolvida.

Sabemos que tal integridade é necessária, mas não sabemos como produzi-la; é o que Lacan chama de “mítico e idealizado”7. Em vez disso, ele nos diz para pensar na “dimensão da verdade”.

Szasz nos apresenta o conceito de transferência como produtor de um perigo que Lacan escolhe ignorar em favor de, em sua cruzada contra a IPA, censurá-lo por ser um tipo de behaviorista, cientificista, etc. O que não impede de extrair certos pontos de sua apresentação do artigo de Szasz, como no caso da definição da transferência como fenômeno estritamente analítico ou não.

“Realidade”

O psicanalista é incapaz de definir a realidade porque ela já está definida pelo Outro e para o Outro: a repetição do mesmo objeto a. Essa é a solução de Lacan para a questão da iatrogenia: o paciente está protegido do abuso de poder do analista porque o analista é obrigado a se orientar segundo o Real, “aquilo que não muda” vindo do paciente.

O discurso psicanalítico, em Szasz, tem como pressuposto que certas ações sejam ilusórias. Para que o paciente chegue nesse ponto de “educação” sobre o inconsciente, ele precisa aceitar essa premissa. Sem isso, não haveria análise, pois não seria possível analisar a transferência. Esse é, não só o começo, como também o fim da análise: necessário para o seu início e horizonte de sua ação. Primeiro se convence de que os objetos internos existem, e depois se tenta investigá-los. O jogo é jogado dentro daquilo que é comensurável pelo discurso psicanalítico.

Essa linha só funciona com a orientação em relação ao ego, à consciência e a conscientização. Eu não diria que isso é um “desvio da causa freudiana” ou algo do tipo, já que “o convencimento sobre a existência do inconsciente” é algo herdado de Freud e presente na linha lacaniana. A diferença é que, nessa última, isso não é empreendido por uma via consciente. Em vez disso, o convencimento toma a forma de um ato que gere insight ou curiosidade, ou seja, de forma que o “convencimento” venha de dentro.

Para Lacan, a proteção do paciente vem do fato de que ele não tem que persuadir o paciente de nada; a imutabilidade do objeto a seria demonstrada pelo eterno retorno do mesmo Real. Seria apenas uma consequência da estrutura simbólica.

Lacan entende que a interpretação em Szasz consiste em afirmar que certas ações não correspondem à realidade. Para ele, a questão seria mapear o sujeito em relação ao significante, que é diferente de mapeá-lo em relação à realidade, pois o significante diz da Verdade.

A interpretação como determinação da realidade é precisamente o que Szasz tenta evitar. Entendo que o texto de Szasz coloca a interpretação em dois momentos:

Em um primeiro, o convencimento do paciente sobre o inconsciente. Isso comparece implicitamente no texto, por necessidade de sua estrutura;

Em um segundo, após o consenso entre paciente e analista de um evento ser considerado transferencial, a investigação do que essa ilusão significaria. Essa é a interpretação a que Szasz se refere ao longo do texto.

A interpretação lacaniana é, aparentemente contrária a isso. Segundo ele, ela só é aceitável na medida em que se diz que o paciente está falando a verdade em sua enunciação (Lacan, S11, p. 140). Incidentalmente, ela tem o mesmo resultado: reconhecer algo que está desencaixado com as demandas da realidade. Importa que isso se chame de Verdade ou transferência?

Importa, apenas, na medida em que você precisa corresponder ao Real; que o Real não seja somente o que se repete, mas o que deve ser repetido. Não deve ser repetido, mas simplesmente se repete; não é a realidade, mas o Real. Já que não há alternativa, temos que nos acostumar com ele.

“Comportamento”

Para Lacan, o que permite a interpretação é que haja um ato – e não um comportamento. (S11, p. 50). Somente humanos agem, porque ações são sempre em função do Outro.

Não deixa de ser uma conclusão parecida com Szasz, que discerne entre um comportamento (adequado à realidade, inanalisável) e um ato (transferencial, analisável). Ele propõe uma solução para isso com uma estratégia de consentimento, sua ideia da validação cruzada. Armado das palavras adaptação e realidade, ele pode tentar, de maneira mais ou menos operacional, delimitar o campo de operação do analista.

Lacan demonstra seu desgosto pela ideia de adaptação (S11, p. 51), mas não propõe, em seu lugar, algo que possa corresponder a ela em sua teoria: algo que limite o que pode ser interpretado, impedindo que o analista abuse desse poder. Como Lacan decide se algo é analisável? Quem está apto a decidir o que é um ato e o que é apenas um comportamento? Lacan endereça essa questão em outros momentos:

a) “A resistência é sempre do analista”, impedindo que ele acuse o paciente de resistir;

b) “O analista só se autoriza por si mesmo e por alguns outros”, sugerindo que a integridade pode ser produzida pelo teste de realidade dos pares e a autoanálise;

c) O passe, que funciona como tal autorização de alguns outros.

Tais conceitos tem como direção neutralizar o risco fundamental da transferência. É a impossível demonstração de integridade. No entanto, o passe não poderia ser chamado de teste de realidade sem acender sirenes.

Com isso, o que parece se revelar é o foco lacaniano nas palavras em vez de seu sentido; um tipo de caricatura da primazia do significante. Nesse espírito, no seminário mais lido e relido, Lacan se contenta em afirmar que a proposta de Szasz é um tipo de terapêutica conformista ortopédica (S11, p. 135), ignorando o sentido contrário do texto.

O comportamento seria o automaton, enquanto o ato seria a tiquê; o ato seria uma repetição ou um encontro com o Real. Como a análise é a profissão mais direcionada ao Real (Lacan, S11, p. 53), quem decide, é claro, é o analista. Como não há critério para decidir quem é analista, nem critério para a sua formação, isso reabre o problema do poder na interpretação.

Se você nasce no campo do Outro, tudo o que você faz está determinado por ele. Assim, tudo seria ato e nada comportamento. Portanto, tudo seria analisável.

A solução lacaniana para esse perigo é, junto do Real, o “só-depois”: se uma intervenção tem efeito, ela foi uma interpretação; se não teve efeito, não foi. Não só seus pares não teriam capacidade de “testagem da realidade”, como o próprio analista não teria a capacidade de avaliar a si mesmo, para além daquilo que “funcionou”. É quase impossível falar que algo foi um erro, porque só se descobre isso posteriormente, e raramente se tem acesso a um resultado que não seja positivo.

Nesse sentido, endereçando os repetidos questionamentos de Lacan no seminário 11, a psicanálise se diferenciaria da ciência em um ponto central: ela não teria capacidade de prever, funcionando apenas na base da avaliação de eventos no passado. O que não faz com que a “integridade” seja prescindível, mas que ela seja tomada implicitamente: o psicanalista, como o inconsciente, tem uma função evanescente. Quando ele interpreta bem, ele é íntegro. Como não há interpretações ruins – uma intervenção ruim não é uma interpretação – o psicanalista nunca está em posição de ser questionado quanto à justiça de seus atos. Justiça é o campo do juiz, é claro; o psicanalista lida com a Verdade.

Adaptar-se à realidade, acostumar-se com a diferença sexual

Ambos os autores não acabam defendendo a mesma coisa, mas de lados contrários?

Objetos internos podem ser tratados apenas por defesas intrapsíquicas; eles podem ser domados, mas não podem ser mudados. Para alterá-los, é necessário reconhecer a existência psicológica de objetos internos por seus efeitos sobre objetos reais, externos. […] A relação analítica […] destina-se, assim, a ajudar o paciente a aprender sobre seus objetos internos. (Szasz, 1963, p. 435)

O que se entende como problemático na psicologia do ego é a tentativa de adaptar o paciente a uma realidade derradeira. Szasz afirma que o que está em questão é a melhorar a relação com um objeto interno que é imutável. Não é isso, precisamente, que os lacanianos falam?

Encontrar essa impossibilidade decorre no próprio curso da análise. Quando se encontra a impossibilidade numa análise, encontra-se a realidade. Não a realidade externa, mas uma realidade, num certo sentido, interna ao próprio curso da análise, que resulta de seus impasses. É isso que Lacan chamou de real, dito de outra forma, a realidade como experiência do impossível de dizer. (Miller, 2012, p. 29).
Cada um de nós tem, nas palavras de Wittgenstein, um “sobre aquilo de que não se pode falar”. Tem, inclusive, caso não queira sofrer desnecessariamente, um convite para dever calar-se a respeito do que não tem nome. Não por censura, evidentemente, mas por impossibilidade. É o caso da libido freudiana, força vital que não pode ser recoberta por meio das palavras. (Riolfi, 2014, p. 441)

O conceito de transferência protege o analista, que não precisa ser alvo da intensidade afetiva do paciente. Ele também protege o paciente das pretensões psiquiátricas de seu analista. Ao dizer que algo é transferencial, ao mesmo tempo que se recusa alguma realidade no que o paciente fala (da mesma forma que se faz com uma alucinação, que não corresponde ao mundo físico compartilhado), se legitima a experiência subjetiva dele.

O conceito de transferência obriga o analista a considerar o que acontece como “verdadeiro”, mesmo que não seja “correspondente” à realidade. No caso de Lacan, isso se apreende como correspondência ao Real da enunciação, o que, segundo ele, não seria uma adaptação – mesmo que seja o analista quem apreenda o sentido da enunciação.

Em Lacan, como é impossível que o paciente comunique conscientemente a sua experiência, recai sempre ao psicanalista a responsabilidade de decidir o que é e o que não é. Por isso, sua teoria é incapaz de lidar com elementos hermenêuticos sem que eles se tornem julgamentos de valor, tendo que recorrer a interpretações como atos cujo valor só pode ser compreendido posteriormente.

Ou, pelo menos, ele coloca toda a carga dessa questão no conceito de Real, que neutralizaria o sentido proveniente do analista, de forma que abordar o Real – decidir o que é Real8 – não seja uma operação inteligível, mas sensível. O Real não teria a ver com o pensamento mas com o corpo, afinal.9

Estar ciente do desejo

Para onde tudo isso está levando? Está nos levando à questão de saber se devemos considerar o inconsciente como uma remanência (sic) daquela junção arcaica entre pensamento e realidade sexual. (Lacan, S11, p. 152)

Em nenhum momento, Lacan fala que a realidade é o corpo, ou que o corpo é Real. Ele apenas diz que a realidade do inconsciente é sexual, que a sexualidade vem da diferença sexual, e sugere que a diferença sexual é um fato biológico. Ele também diz que o desejo surge não da sexualidade natural, mas de uma sexualização, o processo de produção do desejo por meio da necessidade. Em ambos os casos, vemos que há um organismo na origem. Há um fato biológico, um substrato que condiciona a questão significante, posterior.

A copulação produz o significante. Os dois se misturam em ciências primitivas como a astronomia chinesa, mas em algum momento a astrologia se separa da astronomia (Lacan, S11). Aí, ele diz que o essencial é a diferença entre demanda e desejo, e que o desejo existe em função do “efeito do significante sobre o sujeito”. É difícil não assumir que o sujeito seja, aqui, um substituto para o corpo. Afinal, como o significante afetaria algo ele ainda não produziu?

Não se trata de uma essência nem substância, mas do processo primário baseado em uma realidade biológica. Em resumo, a necessidade biológica é colonizada por um desejo simbólico. Dizem que isso seria uma distorção do ensino lacaniano (Eidelsztein, 2020), mas não vejo como. É um caminho longo e tortuoso, mas vemos que o desejo e o significante estão ancorados em certa realidade estruturalista que depende de uma realidade biológica subjacente, filo e/ou ontogenética.

Se o objetivo de Lacan ao elaborar o seminário 11 era dessubstancializar a psicanálise, ele o faz de maneira inconstante. Lacan o chama de “realidade do inconsciente”, orientada segundo a diferença sexual, que é ao mesmo tempo uma realidade material e uma realidade significante. Ele afirma categoricamente que o inconsciente não tem afinidade com a realidade. Ele tem sua própria realidade: sexual, estrutural, significante. Em vez de “o inconsciente tem afinidade com a realidade” – equivalente ao cogitatio natura universalis (ver nota 9) , ele diz que “a realidade tem afinidade com o inconsciente”.

O termo “realidade sexual” retém a dualidade topológica que Lacan insiste com a autointersecção do cross-cap: se colocada ao lado da necessidade, a realidade sexual é a divisão sexual biológica; se colocada ao lado do desejo, a realidade sexual é a forma com que a fantasia se manifesta. Sua função é ser um termo que una realidade e fantasia sem priorizar um dos lados.

Esse perigo ontológico, como o perigo freudiano, não é algo que Lacan ignore. Pelo contrário, me parece ser esse o objetivo do seminário 11: “Agora, o que estamos lidando na unidade é essencialmente orgânico? […] Não só não penso assim, como acho que um exame sério da elaboração freudiana da noção de pulsão vai contra ela.” (Lacan, S11, p. 162).

Pode-se dizer que o projeto lacaniano é uma tentativa de formulação de um discurso totalmente novo – uma ciência que leve em consideração o desejo, digamos.

Outra maneira de entender esse projeto seria uma tentativa fracassada de superar uma teologia negativa, que falha em seu eterno retorno do real-transcendental platônico; uma reprodução cansada de Kant, em que não se alcança a realidade mas apenas suas representações sensíveis (a fantasia), enquanto as Categorias a priori (o Real) orientam o entendimento; nem entendimento, pois o pré-ontológico está antes tanto do entendimento quanto da vivência (Heidegger apud Graña, 2016, p. 75).

Me parece que seu recurso a uma noção de verdade mais anterior e verdadeira do que as verdades até hoje alcançadas, que ele faz utilizando a ideia de “pré-ontológico” (Lacan, S11, p. 29), o condena à segunda opção: ser mais um filósofo que tenta encontrar o que há atrás da cortina, ao mesmo tempo que afirma que não há nada lá.

Obscenidades

Dou mérito a Szasz por tentar ser compreendido, enquanto Lacan faz malabarismos conceituais que mantêm em segredo sua lógica, alimentando um tipo de crítica deslumbrante à psicologia do ego, em vez de tentar entender utilidade das proposições do texto ou a que problemas ele responde. Com isso, ele reintroduz problemas que teoricamente já tinham sido solucionados.

Por si só, isso seria apenas uma leitura de má vontade feita por um autor. Entretanto, quando esse estilo de análise é colocado em interação com a dinâmica de culto dos lacanianos, isso funciona como barreira para o progresso de toda uma disciplina.

Se pudermos analisar as vantagens e desvantagens das diferentes perspectivas, para além do alarmismo em relação aos termos que são utilizados por um ou por outro, podemos tornar a leitura de um texto uma experiência edificante, em vez de uma adaptação a uma ou outra seita psicanalítica.

A noção de transferência é tranquilizadora para os terapeutas precisamente porque implica uma negação (ou atenuação) do “pessoal” na situação analítica. Quando Freud explicou a transferência para Breuer, Breuer extraiu dela a ideia de que as propostas sexuais de Anna O. eram "realmente" destinadas aos outros, não a ele: ele era apenas um substituto simbólico dos objetos de amor "reais" do paciente. Essa interpretação tranquilizou tanto Breuer que ele abandonou suas objeções à publicação de Estudos sobre a Histeria. O conceito de transferência foi necessário para Freud, não menos que para Breuer, antes que qualquer um ousasse publicar o tipo de material médico-psicológico nunca antes apresentado por cientistas respeitáveis. A reação de muitos grupos médicos confirmou os temores de Breuer: esse tipo de trabalho era da polícia, não dos médicos. Mais do que apenas o pudor dos círculos médicos germânicos do final do século XIX é traído por essa visão; sugere que, na psicanálise, o que se interpõe entre a obscenidade e a ciência é o conceito de transferência. (Szasz, 1963, p. 442)

Na época, a obscenidade era moral. O papel da polícia é impor o certo e punir o errado.

Na visão de James, “verdadeiro” assemelha-se a “bom” ou “racional” por ser uma noção normativa, um elogio prestado a enunciados que parecem estar valendo a pena e que se encaixam com outros enunciados que estão fazendo isso. Pensar que a Verdade está “lá fora” é, na opinião deles, estar de quatro com a visão platônica de que o Bem está “lá fora”. […] Muitos séculos de tentativas de explicar o que é “correspondência” falharam, especialmente quando se trata de explicar como o vocabulário final da física futura será de alguma forma o Próprio da Natureza – aquele que, finalmente, nos permite formular frases que apegue-se ao modo de pensar da própria natureza sobre si mesma. Por essas razões, o pragmatista pensa que, seja o que a filosofia da linguagem fizer, ela nunca chegará a uma definição de “verdadeiro” que vá além de James. (Rorty, 1982, p. xxv)
A questão da legitimação encontra-se, desde Platão, indissoluvelmente associada à da legitimação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo [...]. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva. (Lyotard, 1979, p. 13)

Para mim, a decisão do que é verdadeiro ou real se apresenta como igualmente obscena. Qualquer ética da psicanálise deve oferecer seu anteparo para esse fenômeno, em vez de se utilizar disso para se definir como aqueles que realmente alcançam a realidade ou o Real.

Em um sistema de correspondência, sempre há efeitos malignos. Uma ideia vaga de integridade é uma tentativa de lidar com isso. Algo análogo se manifesta no lacanismo quando se diz que a análise pessoal é mais importante que o estudo: a integridade é garantida pela inserção no discurso. A psicanálise é uma práxis e o praticante deve ser prudente; ao mesmo tempo, ele se autoriza por si e não pode ser fiscalizado.

O fato de que o discurso do Outro contém a Verdade e está fora (Lacan, S11, p. 131) produz exatamente essa situação. Um outro, representação do Outro, que sabe de tudo e está sempre certo, o “analista como juiz contra quem não se tem apelo ou recurso […], um campo de puro e incontrolável perigo” (Lacan, S11, p. 132). Ou você cria uma ferramenta que mitiga os efeitos da interpretação, ou você se encontra na posição bizarra de argumentar que o que você faz é pré-ontológico. Por trás de todo enunciado há uma enunciação; por trás de toda enunciação há um sentido; por trás de todo sentido há um hermeneuta. Não há escapatória.


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Notas

  1. https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Szasz

2 Szasz (1963) comenta que desacreditar do discurso do paciente não era exatamente novidade na psiquiatria.

3 Segundo Szasz, esse é sempre o caso na psicose.

4 Incidentalmente, o movimento foi criticado por Popper e Kuhn e declarado morto em 1967. O que torna afirmações contra o verificacionismo da ciência – que não conseguiria, por isso, acessar o Real – um tanto anacrônicas.

5 “existe uma verdade que se opõe à mentira, mas há ainda outra verdade, além da que se opõe à mentira. É uma verdade que ultrapassa, que funda as duas e que está ligada ao simples fato de formular um enunciado, já que não há como dizer, seja lá o que for, sem postulá-lo como verdade. Até mesmo quando eu digo ‘eu minto’, eu afirmo: ‘é verdade que eu minto’.” (Miller, 2012, p. 24)

6 Ontem, 24/05/2022, A Rússia invadiu a Ucrânia. Há necessidade de se conjecturar, em Putin, um problema paterno reprimido para explicar tal acontecimento, ou tem ferramentais mais úteis, adequadas ou mesmo mais verdadeiras para fazê-lo?

7 O que é justo, apesar de sugerir que Szasz estivesse tentando explicar porque não seria idealizado.

8 Da mesma forma que Freud não inventa o inconsciente, mas o “descobre”.

9 Essa imediaticidade entre o Real e o corpo – o corpo teria uma afinidade com a verdade – remonta ao argumento de Deleuze (2018) contra o que ele chama de Cogitatio natura universalis: a imagem que dominou a filosofia por milênios, de que o pensamento tem uma afinidade com a verdade, que ele se direcionaria à verdade naturalmente.

Referências

Deleuze, G. (2018). Diferença e Repetição. Paz & Terra. Original publicado em 1968.

Eidelsztein, A. (2020). A topologia de Lacan não é aplicável a psicanálise tal como a formulou Freud. Retirado de https://bit.ly/36ek6CR.

Evangelista, P. E. R. A. (2016). Psicologia Fenomenológica Existencial: A Prática Psicológica à Luz de Heidegger. Juruá.

Graña, R. B. (2016). [HVD] Heidegger ou as Vicissitudes da Destruição. AGE.

Lacan, J. (1960-1961). [S8]. The Seminar of Jacques Lacan, Book VII: Transference(Trad C. Gallagher.). Retirado de www.lacaninireland.com.

Lacan, J. (1964/1978). [S11]. The Seminar of Jacques Lacan, Book XI: The Four fundamental concepts of psycho-analysis (Ed. J.-A. Miller, Trad A. Sheridan). Norton.

Lacan, J. (1974/2013). The Triumph of Religion preceded by Discourse to Catholics. Polity Press.

Lyotard, J-F. (2008). A Condição Pós-Moderna (10ª ed). José Olympio Editora. Original publicado em 1979.

Miller, J.-A. (2012). A psicanálise, seu lugar entre as ciências. In T. C. Santos, J. Santiago & A. Martello (Orgs.), De que real se trata na clínica psicanalítica? Psicanálise, ciência & discursos da ciência. (pp. 13-34). Cia de Freud.

Riolfi, C. (2014). O que esperar de uma análise levada a bom termo? In J. Forbes (ed.) & C. Riolfi, (org). Psicanálise: a clínica do Real. (pp. 431-442). Manole.

Rorty, R. (1982). Consequences of Pragmatism (Essays: 1972-1980). University of Minnesota Press.

Szasz, T. S. (1963). The Concept of Transference, The International Journal of Psycho-analysis, 44(4), pp. 432-443.

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