Jaspers com Lacan: compreensão, explicação e escuta
1. Compreender
Lacan, no primeiro capítulo do seminário 3, critica o uso da compreensão em psicanálise:
A noção de compreensão tem uma significação muito nítida. móbil do qual Jaspers fez, com o nome de relação de compreensão, o pivô de toda a sua psicopatologia dita geral. Isso consiste em pensar que há coisas que são evidentes, que, por exemplo, quando alguém está triste é porque não tem o que seu coração deseja. Nada mais falso… (Lacan, S3, p. 14)
O que é o conceito de compreensão ao qual ele se refere? Esta citação do seminário 2 pode nos ajudar:
Há dois perigos em tudo o que tange à apreensão de nosso campo clínico. O primeiro é não ser suficientemente curioso. […] O segundo é compreender. Compreendemos sempre demais, especialmente na análise. Na maioria das vezes, nos enganamos. Pensa-se poder fazer uma boa terapêutica analítica quando se é bem dotado, intuitivo, quando se tem o contato, quando se faz funcionar este gênio que cada qual ostenta na relação interpessoal. E a partir do momento em que não se exige de si um extremo rigor conceitual, acha-se sempre um jeito de compreender. Mas fica-se sem bússola, não se sabe nem de onde se parte, nem para onde se está tentando ir. (Lacan, s2, p.135)
A crítica não é em relação à compreensão em um sentido geral de “entender”, mas em um sentido estrito, conforme o conceito de “compreensão empática” de Jaspers. A compreensão seria problemática por sua imediaticidade do entendimento e dependência do talento interpessoal, ou seja, por sua via imaginária em vez de simbólica (Correa, 2011). Com isso, perde-se a intencionalidade da direção estabelecida pelo rigor conceitual, ficando à mercê de nossa intuição, que é medieval e aristotélica (Koyre apud Eidelsztein, 2018a, p. 13).
Lacan dá um exemplo bastante descritivo de uma criança que, ao receber um tapa, pergunta se é um carinho ou uma palmada. Com isso, demonstra que não há resposta natural a eventos. O senso comum, a compreensão, a intuição, não são adequados para a análise do sentido, sendo necessário explicá-lo com base em uma teoria, que leva em conta a manifestação particular de problemáticas gerais.
2. Incompreensível
Correa (2011) afirma que, na clínica da psicose, trata-se de escutar em vez de compreender. Também aponta a incapacidade da abordagem de Jaspers de lidar com o incompreensível, já que sua orientação, nesses casos, é a explicação. Independentemente do mérito do uso da escuta na clínica da psicose e, inclusive, correndo o risco de que ele seja mais adequado do que a proposta do texto, Lacan argumenta, como alternativa à compreensão, o uso da explicação, tomando como modelo a leitura de Freud do livro de Schreber.
O que Lacan assinala não é que temos que usar a escuta em vez da compreensão, mas que desde que você não use o seu senso comum e a noção de normalidade que te ensinaram em medicina, o fenômeno é compreensível na medida em que se articula com outros elementos particulares (o discurso) e universais (a teoria psicanalítica).
Jaspers diverge nesse ponto porque, para ele, é necessário abrir mão da teoria para compreender. Essa é, de certo modo, uma divergência falsa, tendo em vista que sua abordagem fenomenológica tem como objetivo a construção de uma teoria, e não sua aplicação, como veremos adiante. Tomada por esse ponto de vista, a crítica de Lacan parece não proceder. Para Jaspers, a compreensão é usada para o estabelecimento da disciplina. Isso não só não impede como é condição de possibilidade para a aplicabilidade da teoria conforme quer Lacan.
Para Correa (2011), a diferença entre neurose e psicose torna impossível o uso da compreensão empática na clínica da psicose. Compreensão, aqui, é entendida como um meio para alcançar os estados internos do outro por via da empatia. Isso seria inadequado porque na psicose se trata de certeza, que é do registro do real e, portanto, incompreensível. Posteriormente, no artigo, a autora estende a inadequação do uso da compreensão também à neurose, já que seu uso do imaginário impede a escuta da diferença.
Ou seja, mesmo que a operação da metáfora paterna permita a dialética e o “contato” na neurose, isso não autoriza a imediaticidade da compreensão. A extração do objeto a, marca fundamental da neurose, fornece a oportunidade de laço, mas não garante a significação comum necessária para se compreender a experiência do outro.
O que se diferencia entre a neurose e a psicose é a abordagem clínica necessária: na neurose, é possível buscar a “compreensão” da dinâmica interna, isso é, a explicação por meio de uma teoria que tome os fenômenos como casos particulares de construções maiores. Parte do efeito terapêutico na neurose deriva das direções indicadas por essa articulação do particular com o universal, ou seja, da “explicação” freudiana. A presença do significante da falta do Outro na neurose possibilita que haja, por exemplo, o esquema R, referente à estrutura da neurose. Em contraste, o esquema I não se refere à estrutura da psicose no geral, mas da psicose específica, singular, de Schreber (Eidelsztein, 2018b). Isso ocorre porque na psicose se trata de singularidade radical, não de um caso particular de um modo de funcionamento geral.
A compreensão tem um possível efeito de redução de angústia, mas se a direção do tratamento do neurótico passa pela sustentação da angústia para que se revele aquilo que importa, ela tem pouco espaço para além da promoção da transferência em sessões iniciais ou momentos críticos. Ela é importante, mas seu papel é o de uma atividade-meio, para a manutenção da análise, do que uma contribuição para a atividade-fim, que seria a direção da cura, a travessia da fantasia, etc.
Na psicose, por outro lado, o efeito terapêutico deriva do secretariado, isto é, do acompanhamento experiencial apesar da impossibilidade de compreensão. Há explicações possíveis, é claro: a própria afirmação da impossibilidade de compreensão dada a ausência do significante da falta do Outro é, em si, uma explicação. Acontece que ela tem pouco efeito sobre o tratamento, para além deum princípio ético geral de respeito à subjetividade. Esta se contrapõe a uma posição psiquiátrica de submissão, característica do interesse institucional. Para isso, no entanto, não é necessária nenhuma metafísica psicanalítica.
Correa (2011) argumenta é que colocar-se no lugar do psicótico para compreender sua vivência é inoperante, já que sua experiência é radicalmente diferente devido à falta da metáfora paterna. Optar pela explicação desvia desse problema, já que ela se utiliza tanto da relação entre os elementos internos do discurso para atribuir valor aos significantes quanto da articulação da teoria psicanalítica com a função de tais significantes no drama pessoal. Em ambos os casos, não se utiliza de empatia para chegar a uma conclusão e, portanto, a ausência da extração do objeto a não é impedimento.
Se o uso da compreensão é problemático por ser imaginário, o uso da explicação não seria igualmente imaginário? Era esse o problema que Jaspers tentava solucionar ao propor a empatia: a fonte de conhecimento para o estabelecimento de uma disciplina precisaria vir do fenômeno imediato da patologia, e não da impressão do médico sobre ela.
É em função dessa divergência irredutível entre fenomenologia e estruturalismo que Lacan redireciona a crítica de volta a Jaspers: a crença na empatia fornece uma falsa impressão de neutralidade, já que ela é, também, mediada pela linguagem. Sua proposta alternativa é estruturalista: articulação simbólica dos significantes encontrados no discurso do analisante.
Podemos ver essa crença no imaginário no que Lacan chama de dentistas, ou seja, pessoas que acham que se dão bem com a demanda do Outro:
O tipo de gente, que definiremos por notação convencional como os dentistas, está muito seguro quanto à ordem do mundo porque pensa que o Sr. Descartes expôs no Discurso do Método as leis e os processos da clara razão. Seu [eu] penso, logo sou, absolutamente fundamental no que diz respeito à nova subjetividade, não é, no entanto, tão simples quanto parece a esses dentistas, c alguns acham que devem reconhecer aí uma escamoteação, pura e simplesmente. Mesmo que efetivamente seja verdade que a consciência é transparente a si própria e que é apreendida como tal, fica patente que, nem por isso, o[eu] lhe é transparente. Ele não lhe é dado de modo diferente do de um objeto. (Lacan, s2, p. 13)
Nessa perspectiva, a própria adaptação consciente é usada como evidência de acesso transparente a si mesmo. Isso toca em um dos pontos de crítica mais conhecidos de Lacan, em relação ao que ele chama a psicologia do ego: psicanalistas pós-freudianos que usam o analista como ponto de orientação para o que é ou não adequado.
Jaspers declara que um critério pra classificação de um fenômeno como patológico é a sua própria incompreensão, baseada em sua experiência pessoal. Pra lidar com isso, ele diz que algumas coisas apenas acontecem espontaneamente, sem causa:
Em condições patológicas, numerosos fenômenos psíquicos surgem sem antecedentes que lhes confiram sentido; psicologicamente falando, não emergem de nada. Do ponto de vista causal são decorrentes de um processo mórbido. Memórias vívidas de coisas nunca experimentadas; idéias sustentadas com uma convicção de sua veracidade e sem qualquer base inteligível para tal convicção; afetos e emoções aparecendo espontaneamente e não com base em quaisquer experiências ou ideias relevantes; todas estas e muitas outras são exemplos comuns. (Jaspers, 2005/1912, p. 778)
O problema com isso não é, necessariamente, o uso do método da compreensão. A própria definição do que é psicose é atravessada pela incompreensibilidade. O problemático é a interpretação dos resultados como incompreensíveis por não terem correspondência com experiências pessoais do médico. A questão se complica ainda mais quando se pensa nas consequências da diferença entre essas posturas: assumir que o psicótico tem uma lógica própria ou assumir que não tem lógica. Colocar o sujeito em um não-jogo é diferente de colocá-lo em um outro jogo.
A clínica da psicose responde especialmente mal à compreensão porque se organiza por meio da singularidade e não da particularidade. Isto é, a clínica da extração do objeto a trata de variações sobre os mesmos temas, enquanto a clínica da holófrase, devido à ausência de uma estrutura legalizada (Eidelsztein, 2008, p. 78), joga sempre um jogo distinto. Suas regras não são passíveis de se alcançar por meio da compreensão, seja ela intuição ou experiência pessoal. Na verdade, a inserção da lei por meio da fala do analista tende a gerar efeitos deletérios. Mesmo foracluída, a metáfora paterna ainda tem o seu efeito real.
Para que reintroduzir a realidade transcendente do autonomous ego? Ao se olhar de perto, trata-se de autonomous egos mais ou menos iguais s conforme os indivíduos. Regressamos aqui a uma entificação segundo a qual não só os indivíduos existem como tais, mas ainda alguns existem mais do que outros. É o que, mais ou menos implicitamente, contamina as chamadas noções do eu forte e do eu fraco… (Lacan, s2, p. 20)
Dizer que o senso comum não é o bastante, nesse contexto, tem mais consequências do que parece. Ouso do senso comum, ainda mais da parte de uma autoridade, é, em essência, a demanda do Outro. A compreensão, nesse sentido, é a expectativa de que se reaja conforme socialmente se é esperado; se a reação é diferente, é devido a algum transtorno. Esse uso é o oposto do que se busca em análise, que é a redução da influência da demanda do Outro. A análise conforme a orientação de um ideal, e um ideal traçado pelo analista, é ainda mais neurotizante.
3. Confusão
O comentário de Lacan sugere que existe uma grande discordância entre os dois autores no que se refere a senso comum, intuição e empatia. Vejamos o que o Sr. Jaspers tem a dizer sobre o assunto:
Na vida cotidiana ninguém pensa em termos de fenômenos mentais isolados, quer sejam seus próprios quer sejam os de outra pessoa. Nossa preocupação pessoal é sempre com aquilo que é o objeto de nossa experiência, e não com o processo mental relacionado a ela. [...] O mesmo se passa com a atitude do psiquiatra para com seu paciente. Ele pode compartilhar da experiência do paciente, isto sempre ocorrendo espontaneamente, sem que tenha que refletir sobre isso. Neste sentido ele pode obter uma compreensão essencialmente pessoal, indefinível e direta que, no entanto, permanece-lhe como pura experiência, e não como conhecimento explícito.
Oh não! Será ele apenas um fenomenólogo ingênuo? Continuemos lendo.
Ele ganha prática em compreender, mas não constrói um repertório de material clínico – “experiência” no sentido profissional – que lhe seria mais útil que meras sensações vagas e impressões, e que poderia comparar, organizar, ou submeter a testagem.
A atitude meramente empática, que pode ser bastante satisfatória para alguns – tanto que para alguém a isto inclinado esta pode se tornar seu objetivo profissional – é, deve-se admitir, “subjetiva” num sentido bastante peculiar. E quando formulações ou afirmações específicas são feitas tomando-a como base, e sem qualquer referência a estudos de maior alcance ou a algum sistema conceitual, merece-se rejeitar a boa fundamentação desta conceituação e tomá-la como “meramente subjetiva”, num sentido pejorativo. Afirmações de tal ordem não podem ser discutidas ou verificadas. Podemos apreciar este tipo de compreensão, podemos admirá-la pelas valiosas qualidades humanas que revela; mas jamais podemos reconhecê-la como “ciência”, quer a encontremos diariamente como prática de pessoas civilizadas e educadas ao longo dos séculos, quer em sua feição clínica como a preocupação instintiva do psiquiatra por seus pacientes.
Oh não! Será ele apenas um positivista ordinário? Continuemos lendo.
Contudo, se ainda desejamos desenvolver uma ciência psicológica devemos, por um lado, reconhecer desde o princípio que seu ideal é uma compreensão plenamente consciente dos fenômenos mentais, de um tipo que possa ser apresentada por meio de terminologia e formas definidas, em contraste à compreensão vaga ou inconsciente que é alcançada apenas de modo pessoal e subjetivo através do posicionamento e aptidões de dois indivíduos específicos. Mas devemos reconhecer também que a psicologia não pode almejar alcançar tal ideal científico; em vez disso deve se engajar em diversas abordagens promissoras. De fato, estas abrem perspectivas, porém a solução que lhes seria ideal persiste infinitamente remota. Por isso tantos praticam sua compreensão pessoal puramente para sua própria satisfação e, do alto de sua vaga e ainda assim penetrante compreensão, olham condescendentemente para baixo em direção a todas as tentativas de definir conceitos em nível consciente, descartando-as como chavões estéreis ou trivialidades. Ainda assim, o fato de apenas tais refletidas determinações psicológicas constituírem contribuições para o conhecimento lhes confere, do ponto de vista científico, valor ímpar – mas apenas deste ponto de vista. (Jaspers, 2005/1912, p. 773)
Ele está… criticando o uso do senso comum e da intuição? Não era essa a crítica direcionada a ele? Não só isso, mas ele denuncia os psicólogos que recusavam as tentativas de sistematização e usam a compreensão como ferramenta de satisfação pessoal! Seria ele um proto-integrante da Borda Lacaniana?
Após essa extensão citação, podemos afirmar que Jaspers não é apenas um fenomenólogo ingênuo buscando o acesso direto à essência dos fenômenos por sua intuição. Mas nem por isso ele se torna um positivista sem-vergonha que quer dominar o universo por meio de sua racionalidade. Jaspers, apesar de sua tendência fenomenológica (portanto, ontológica), estava interessado no estabelecimento de uma ciência e as complexidades decorrentes de uma ciência da experiência humana.
A proposta de Lacan contra a compreensão empática acaba por se reencontrar com ela: usar da teoria psicanalítica (“compreensão”, utilizando uma intuição qualificada) para ouvir o que o analisante diz sem assumir que entende imediatamente suas significações (“empática”). Ambas as posições respondem de maneira parecida aos mesmos problemas. Abordemos alguns deles.
4. Objetividade x subjetividade
Jaspers:
Quando, usando esses métodos, tentamos nos aproximar da vida psíquica do paciente, nossa primeira impressão é de um insondável caos de fenômenos constantemente mutáveis. Nosso objetivo inicial deve ser apreender, delimitar um elemento particular, e retratá-lo com fim de construir uma noção do mesmo, da qual nós e outras pessoas possam fazer uso permanente (Jaspers, 2005/1912, p. 777)
Lacan:
Se a gente acreditar que estas duas dimensões [imaginário e simbólico] vão dar numa só porque elas se confundem no fenômeno, se está enganado. E se chega a uma espécie de comunicação mágica, a uma analogia universal, em cima do que muitos teorizam sua experiência. No concreto e no particular, é frequentemente muito rico, mas absolutamente inelaborável, e sujeito a todos os erros de técnica. (p. 138).
A comunicação mágica sugerida pela intuição e pela compreensão imediata tem sua riqueza, mas não é sistematizável e, portanto, não se presta à criação de uma ciência. Esta precisaria encontrar meios de delimitar conceitos pra que eles possam serem aplicados posteriormente.
Jaspers (2005/1912) deixa claro que seu interesse é em fenômenos concretos. A fenomenologia é escolhida como uma ferramenta necessária para a abordagem dos sintomas subjetivos, mas seu interesse é em se utilizar dos fatos que se apresentam por meio da compreensão, por terem maior interesse que as induções de sistemas teóricos, como é feito em psicanálise.
Jaspers:
Devemos principiar com uma representação clara do que realmente está se passando com o paciente, o que ele está realmente experimentando [...] evitar o emprego de quaisquer construtos básicos ou modelos de referência. Devemos figurar apenas o que de fato se apresenta à consciência do paciente […] devemos voltar nossa atenção apenas para o que podemos entender como tendo real existência, e que podemos diferenciar e descrever. […] Quando éramos crianças, inicialmente desenhávamos as coisas como imaginávamos, não como as enxergávamos. Do mesmo modo, quando psicólogos e psicopatólogos, atravessamos um estágio em que, de uma maneira ou outra, formamos nossas próprias idéias sobre os eventos psíquicos, e apenas posteriormente adquirimos uma apreensão sem preconceitos destes eventos como realmente são. (Jaspers, 2005/1912, p. 774)
Tudo isso tem algum mérito heurístico na psicoterapia, mas não pode ser levado muito longe. O problema dessa afirmação é o problema com qualquer fenomenologia das essências: assumir o acesso imediato aos fenômenos, sem influência do simbólico e do imaginário. Ele fala de uma real existência, quando para um psicanalista, o complexo de Édipo é tão, senão mais, real do que aquilo que ele ouve de seus analisantes.
O exemplo da criança é curioso. Ele não assume a nostalgia típica que poderia ser descrita da seguinte forma: a criatividade infantil faz com que elas vejam o mundo como ele é, espontaneidade que é perdida pelos adultos ao terem que se adaptar às exigências cruéis do mundo. Jaspers fala, inesperadamente, de progresso, de desenvolvimento de uma habilidade de ver, para além da imaginação. O uso dessa metáfora visual é nos interessa porque, como nos informa Panofsky (2003/1924, p. 15), não só a ideia de perspectiva (a do quadro, da qual nasce a topologia projetiva) é historicamente condicionada, a própria percepção ocular é alterada. A imagem visual psicológica é diferente do que seria esperado da imagem projetada pela retina devido à curvatura do olho. Não vemos as coisas como são: a passagem da percepção para a sensação já altera a imagem. Mesmo na visão, o sentido mais imediato e óbvio, “substituímos o que vemos pelo que sabemos” (Eidelsztein, 2018a, p. 21).
Lacan desvia desse problema ao propor a explicação como alternativa à compreensão. Ao se ater tanto à utilização da relação entre os elementos internos do discurso para atribuir valor aos significantes, ele se mantém no campo estritamente simbólico e evita-se os problemas imaginários denunciados em Jaspers, na medida do possível1.
Lacan:
é bastante singular que vocês não apreendam que qualquer progresso científico consiste em fazer com que se esvaeça o objeto como tal. […] O que denomino ser é esta palavra derradeira, que não nos é certamente acessível na posição científica, mas cuja direção nos é indicada nos fenômenos de nossa experiência. (Lacan, s2, p. 137-138)
Ele se interessa tanto pelo progresso da ciência quanto pelo fato de que ela não é capaz de falar precisamente do objeto em questão, o ser humano. Essa tensão não escapa a Jaspers, como descreve Rodrigues (2005):
Aqui, o termo empatia tem um sentido preciso. Ela consiste, para Jaspers, na “atualização” ou representação, em primeira pessoa, da experiência de outrem. Tratar-se-ia de um compartilhamento intuitivo e não reflexivo da vivência psicológica do interlocutor. Neste sentido, uma importante distinção que se precisa reconhecer é a feita por Jaspers – tal qual por Weber – entre “empatia” e “compreensão empática”. Enquanto a primeira consistiria numa “compreensão da pura experiência” (algo como dizer: “Uhm... entendo o que você está passando”), não sendo derivada de uma captura deliberada nem do processamento consciente e programado das informações provindas da interação entre os indivíduos; a última seria a “compreensão da experiência tornada cognoscível” – delimitada, descrita e nomeada (Walker, 1995b). Esta “compreensão empática” seria o coroamento da fenomenologia, aliando dois elementos: um de natureza cognoscível e delimitadora; e o outro, seu “preenchimento”, de natureza psíquica e ainda propício à empatia. (p. 757)
O próprio conceito de “compreensão empática” já é uma elaboração em cima das limitações da “empatia”. As soluções dos autores são parecidas: encontrar um jeito de juntar o teórico com o prático, o objetivo com o subjetivo, de forma a constituir uma disciplina útil que não caia nas armadilhas de nenhum dos lados.
Podemos ver um esforço parecido na teoria lacaniana pela diferenciação entre os conceitos de significante e de letra, conforme vemos em Eidelsztein (2008):
Em psicanálise não se trabalha com o significante em estado puro, mas na articulação da estrutura do significante e do corpo. Isso significa, para além do que já foi dito, que para o psicanalista, dentro do “conjunto covariante de elementos significantes” [definição de estrutura], a noção de significante em sua prática deve ser transformada na noção de letra. A linguística trabalha com significantes, mas a psicanálise, dado que seu campo implica necessariamente a particularidade do sujeito e a articulação ao sofrimento do corpo, opera com a letra. Por quê? Porque a letra será o significante essencialmente localizado. “Essencialmente” significa que a essência do significante, em psicanálise, radica em sua localização. Vale por sua localização e não, por exemplo, pela diferença que parece inscrever em uma determinada língua, pela cristalização de significado que ilusoriamente arrasta. (p. 54)
A evitação de sistemas teóricos pela parte de Jaspers é então respondida: a teoria comparece na prática por meio de significações particulares e articulações com o corpo. O significante se torna letra. O que comparece não é a estrutura, mas o romance familiar. Mas esse romance pode ser articulado, explicado por meio da estrutura, em vez de ser compreendido por algum tipo de significação comum. Além disso, acaba-se por evitar o senso comum como consequência do valor diferencial do significante: se uma significação depende da articulação entre significantes, é improvável que a experiência pessoal do analista diga algo sobre as significações particulares do analisante. Há uma experiência em jogo, mas ela se encontra em um nível profissional, em vez de pessoal. Ela não é consciente, mas é “auditável”, comunicável, intencional, diferentemente dos preconceitos do senso comum.
5. Aparência x estrutura
Jaspers:
Assim, antes que uma investigação válida possa se iniciar é necessário identificar os fenômenos psíquicos específicos que serão seus objetos, e estabelecer as diferenças e semelhanças entre estes e outros fenômenos com os quais podem ser confundidos. Este trabalho preliminar de representação, definição e classificação dos fenômenos, perseguido como atividade independente, constitui a fenomenologia. (Jaspers, 2005/1912, p. 771)
Mais detalhadamente, por Rodrigues (2005):
a fenomenologia não visa ser uma metodologia de “tratamento” completo e definitivo aos fatos psico(pato)lógicos. Almeja apenas apontá-los de modo seguro. Ela apenas diz quais são, pelo método explícito que descreveu, para posterior articulação. Assim, a fenomenologia seria uma ferramenta concebida para levar-nos de um ponto em que ainda não se dispõe de uma linguagem explícita para tratamento ao fenômeno psico(pato)lógico até o ponto em que estes estão devidamente caracterizados e permitindo não mais apenas empatia, mas uma “compreensão empática”. (p. 760)
Para Jaspers (2005/1912, p. 776), a empatia teria a mesma função na psicologia que a percepção tem nas ciências naturais. Isto é, ela não ocupa o mesmo espaço da experimentação ou da validação. A empatia é o primeiro passo, o início de uma investigação e, portanto, precisa passar pelo mesmo crivo de confiabilidade da percepção, isto é, “comparação, repetição e verificação das experiências empáticas” (Jaspers, 2005/1912, p. 776). A intuição, a percepção e a empatia não tem, em si, alcance a qualquer verdade. Elas são métodos de acesso a fatos. Se esses fatos têm interesse a uma ciência, se eles se repetem, não é questão para a psicopatologia, mas para outra disciplina.
Jaspers tem a mesma abordagem do DSM-IV em diante, isto é, ele elege a descrição como objetivo da psicopatologia, em favor da explicação: “buscamos uma classificação que organize os fenômenos psíquicos conforme suas similaridades fenomenológicas entre si” (Jaspers, 2005/1912, p. 781). Lacan propõe o contrário: não é pela aparência, mas pela estrutura, que se diagnostica:
Dizer que uma conversão somática é um sintoma histérico, nessas considerações, implica diagnosticar pela forma ou aparência, que como tais não remetem necessariamente à estrutura […] Postular a noção de “estrutura clínica”, no sentido que a atribui Lacan, impõe rejeitar a “salada”, o “quadro”, e substituí-lo por uma relação entre elementos que seja lógica e inteligível. (Eidelsztein, 2008, p. 58)
Para Lacan, como para Freud, interessa a etiologia. É nesse espírito ele elogia a interpretação do texto de Schreber, ao decifrá-lo “do modo como se decifram hieróglifos” (S3, p. 19):
há da parte de Freud um verdadeiro lance de gênio que não deve nada a nenhuma penetração intuitiva – o lance de gênio do linguista que vê surgir várias vezes num texto o mesmo signo, parte da idéia de que isso deve querer dizer alguma coisa e chega a reconstituir o uso de todos os signos dessa língua. A identificação prodigiosa que Freud faz dos pássaros do céu com as jovens participa desse fenômeno – é uma hipótese sensacional que permite reconstituir toda a cadeia do texto, compreender não só o material significante de que se trata, mas, ainda mais, reconstituir a própria língua, essa famosa língua fundamental de que nos fala Schreber. Mais claramente do que em qualquer outro lugar, a interpretação analítica se demonstra aqui simbólica, no sentido estruturado do termo. (Lacan, S3, p. 19)
Aqui fica claro que não é questão de recusar a compreensão em sentido amplo, mas de recusar a penetração intuitiva imediata, optando pela construção de hipóteses simbólicas utilizando material significante. Em um outro contexto, isso poderia facilmente ser chamado de compreensão; Lacan opta pela palavra sentido.
Jaspers (2008/1912, p. 777) descreve três tipos de fenômenos que podem ser observados pela fenomenologia: o primeiro, que pode ser conhecido pela similaridade a experiência própria, com encadeamento entre eventos. A segunda categoria é a de eventos alterados em sua quantidade, exagerados, fracos ou combinados. Apesar de não ser uma experiência igual, é parecida o bastante. A terceira é a categoria do real, fenômenos completamente incompreensíveis, que só podem ser aproximados por metáforas.
Uma leitura lacaniana desse modelo poderia ser feita das seguintes formas: a) todos os fenômenos entram na primeira categoria, isto é, compreensíveis; b) todos cabem na segunda categoria: manifestações exageradas de problemas universais (Van Haute & Geyskens, 2016); c)todos os fenômenos patológicos se encontram na terceira categoria: inacessibilidade por via da compreensão empática, sendo necessário o uso de analogias e metáforas.
O que está em jogo aqui é o monismo dos eventos: não há fenômenos naturalmente acessíveis ou não; todos tem o mesmo nível de acessibilidade, isto é, inconsciente na superfície, passível de explicação. Nenhum evento é natural, porque qualquer acesso a eles necessariamente passa pela via da significação. A explicação perde o caráter negativo que tem em Jaspers porque que compreender e explicar passam a ser operações da mesma ordem.
Uma maneira de pensar isso é a afirmação freudiana de que só se tem acesso à própria consciência e o acesso a outras consciências necessita mediação. Partindo disso, soa estranho pensar que o acesso ao próprio inconsciente seria imediato, já que ele, apesar de interno, é outra consciência. Por isso a insistência de Lacan em que “isso pensa”, “isso goza”, etc.
Jaspers trai a própria proposta de não usar preconceitos e teorias para compreender os fenômenos ao classificá-los como inteligíveis baseados em experiências pessoais. Levar isso às suas últimas consequências significa tornar o conhecimento absolutamente necessário, conforme apontado por Lacan, por ocupar o espaço da intuição e experiência pessoal:
A experiência imediata não tem mais privilégios para nos deter, nos cativar, como não os tem em qualquer outra ciência. De forma alguma ela é a medida da elaboração a que devemos afinal chegar. O ensinamento freudiano, nisto inteiramente conforme ao que se produz no resto do domínio científico – por mais diferente que devêssemos concebê-lo do mito que é o nosso –, faz intervir móbeis que estão além da experiência imediata e não podem de forma alguma ser apreendidos de maneira sensível. Aí como na física, não é a cor que retemos, em seu caráter sentido e diferenciado pela experiência direta, é algo que está atrás, e que a condiciona.
A experiência freudiana não é de forma alguma pré-conceitual. Não é uma experiência pura. É uma experiência realmente estruturada por algo de artificial que é a relação analítica (Lacan, S3, p. 16)
Lacan enfatiza a mediação da linguagem entre o fenômeno e a experiência, de tal forma que esses termos são transformados: quando se fala de experiência, já se fala de significação. A intuição é determinada por conceitos, em consonância com a visão de Panofsky (2003/1924) da percepção como forma simbólica.
Seguindo com as esquematizações visuais, uma maneira de pensar isso é por meio das cores2. Convenientemente, Jaspers usa as cores como exemplo de fenômenos objetivamente observáveis (2005/1912, p. 776).
Lacan, por sua vez (S3, p. 18), aborda a questão dizendo que é possível interpretar a passagem de um carro vermelho na rua pelos três registros: no real, se indaga a correspondência da realidade com a percepção, como no caso do daltonismo; no imaginário, se usa a compreensão de significações comuns, como é o caso de relacionar o vermelho à raiva; no simbólico, em que a significação é dada diferencialmente e arbitrariamente.
O que Lacan aponta aqui é o contrário de Jaspers: conforme aprendemos na física da escola, não há cores; objetos refletem ondas eletromagnéticas de diferentes frequências e isso gera a experiência de cores em nós. Diferentes espécies veem cores diferentes, mas a frequência das ondas é sempre a mesma. A luz é condição necessária para a experiência das cores, mas não determina a sua significação. A psicanálise, correlativamente, seria um meio de entender os fenômenos psíquicos para além da impressão imediata, de forma que o comparecimento da letra, enquanto significante localizado, possa ser associado ao funcionamento estrutural.
Assim, a compreensão é inoperante apenas quando entendida pela via da perspectiva realis, da visão, da experiência pessoal, etc., que é, em si, demonstração da da ilusão de comunicabilidade fornecida pela inserção na metáfora paterna, extração do objeto a e presença do significante da falta no Outro. Ao transpô-la ao registro simbólico, obtemos a intuição qualificada do clínico, informada por sua orientação técnica e ética, ferramenta essencial na atuação prática. Com isso, a compreensão acaba perdendo sua maior potência: a independência em relação a uma teoria. Mas, se não há metalinguagem, essa perda não significa nada, enquanto os ganhos em termos de ética da comunicabilidade são grandes.
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Referências
Correa, C. R. G. L. (2011). A Compreensão na Psicopatologia de Karl Jaspers e na Psicanálise. Mental, 16, 375-396.
Eidelsztein, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan, Volumen I. Letra Viva.
Eidelsztein, A. (2018a). La topología em la clínica psicoanalítica (3aed). Letra Viva.
Eidelsztein, A. (2018b). Modelos, esquemas e grafos no ensino de Lacan. Toro.
Jaspers, K. (2008) A abordagem fenomenológica em psicopatologia. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., 8(4), 769-787. Original publicado em 1912.
Lacan, J. (1987). O Seminário, Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise(1954-1955). Jorge Zahar.
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Panofsky, E. (2003). La perspectiva como forma simbólica. Fabula Tusquets Editores. Original publicado em 1924.
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1Pode-se argumentar que o imaginário é reinserido quando se faz a ligação dos eventos com a teoria, sendo o exemplo clássico disso a redução de todos os fenômenos ao complexo de Édipo.
2A questão das cores é um problema clássico na filosofia analítica. Sobre esse assunto no contexto da inexistência de uma realidade pré-discursiva, ver Rorty (1979, p. 182).