A morte do autor na clínica: leitura, escrita e o sujeito da psicanálise
Enquanto o uso da psicanálise na literatura proporciona um ponto de vista pelo qual pode-se pensar uma obra, o uso da literatura na psicanálise é uma ferramenta para a melhor compreensão do sujeito com o qual lidamos na teoria e na prática.
Em “Minha vida daria um romance”, Kehl (2001) argumenta que
ao escrever sobre os anseios, desejos e sofrimentos secretos das mulheres oitocentistas, um escritor como Balzac, por exemplo, estaria retratando a ‘verdade subjetiva’ preexistente em suas leitoras, ou contribuindo para ‘produzir uma subjetividade feminina’, esta com a qual Freud veio a se deparar meio século mais tarde? (p. 88)
Barthes, por sua vez, inicia seu clássico “A Morte do Autor” (2004) falando sobre Balzac. Nesse ensaio, ele argumenta que o autor não detém uma verdade a ser transmitida. Tal ideia pode ser estendida à questão apresentada por Kehl: a escrita não é a manifestação de uma verdade anterior, mas um ato viabilizador de leituras, que por sua vez são atos de produção de subjetividade. Essa perspectiva é essencial para os conceitos de sujeito e de interpretação na psicanálise.
Um ponto central apresentado por Kehl (2001) é a afirmação que a literatura moderna não só foi usada para descrever o sujeito moderno, como foi um instrumento essencial para que ocorresse a consolidação desse sujeito. A literatura a qual a autora se refere é o romance realista do século XIX. Um traço característico desse estilo é a pretensão de organização da experiência subjetiva, a descrição do funcionamento da sociedade, em seus sentidos e suas faltas de sentido. A verossimilhança do estilo tem como consequência uma identificação com o narrador onisciente, capaz de organizar a experiência, “manter a ilusão confortadora (na falta de uma ordem divina que faça esta função) de que existe uma certa unidade, uma certa coerência ao longo da vida de cada um” (Kehl, 2001, p. 85). Isso incorre na ilusão de que a vivência é a efetuação de um destino. A busca de sentido aberta pela falta de uma organização natural do mundo é outro componente importante para entender o sujeito da psicanálise.
Imprensa, sujeito, autor
Segundo Lacan (1965/1998), “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (p. 873). Definição herdada de Koyre, entende-se como “sujeito da ciência” a cosmologia consolidada por meio do cogito cartesiano, em que o sujeito é destituído de seu papel natural no mundo, em oposição à cosmologia aristotélica ou medieval, em que os sujeitos possuíam qualidades intrínsecas e o mundo organizado por hierarquias naturais. A correspondência do sujeito da ciência com o da psicanálise é que ambos são esvaziados de substância, de qualidades e de sentido (Biazin & Kessler, 2017).
Uma perspectiva complementar é a da origem do sujeito no Renascimento, com o enfraquecimento do poder da Igreja e o advento da imprensa (Kehl, 2002). Com a redução da soberania divina, ocorre a internalização da função paterna por meio do Supereu. A certeza proporcionada por meio da narrativa divina dá lugar a uma dúvida existencial. O sujeito é emancipado do dogma determinador para ser inserido na insegurança da autodeterminação.
De acordo com Kehl (2001), parte fundamental de tornar abstrata a função simbólica de Deus é realizada por meio do livro. O advento da imprensa proporciona a possibilidade de que “cada fiel [possa] prestar contas diretamente a Deus a respeito de sua devoção e procurar sozinho o caminho de sua salvação” (p. 70). O acesso particular a um texto permite o desenvolvimento de uma espiritualidade privada, que transforma o Outro também em particular. A imprensa consolida o individualismo ao separar a narrativa em grupo da atividade solitária da leitura. Isso permite com que o indivíduo possa decidir sobre o texto, interpretá-lo (Kehl, 2002). Essa liberdade, combinada com a compreensão do sujeito como esvaziado, cria a possibilidade de uma pessoa escreva sua própria história.
Além de sua função na fundação do sujeito da ciência, a invenção da imprensa também produz a função do autor conforme conhecemos hoje. Apesar de parecer óbvia, a função autoral como conhecemos hoje foi estabelecida historicamente. Em um momento que mais livros passaram a ser escritos e publicados, com a criação do mercado editorial e das leis de direitos autorais, criou-se um autor como proprietário do texto (Bellei, 2014).
Também segundo Bellei (2014), a função do autor enquanto proprietário direciona as possibilidades de discurso, inserindo-as na lógica da valorização da obra enquanto produto. O texto é domesticado pelo autor, que controla os sentidos que lhe são permitidos. Ele aponta como ambos Foucault (2018) e Barthes (2004) argumentam contra a tirania do autor, que impede a abundância de sentidos. Esse despotismo impede a desorganização inaceitável que seria proporcionada pelo descontrole da significação.
Foucault (2018) situa o nascimento da função autor no contexto da transformação do discurso-ato (uma enunciação subjetiva) em discurso-objeto (uma coisa a ser consumida), efetuada pelo surgimento da imprensa, e relaciona isso à apropriação penal: a função autor surge “na medida que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores” (p. 47), o que só pôde ocorrer após a redução da influência da verdade religiosa sobre o que pode ser dito.
Muitas vezes, a radicalidade de Barthes (2004) é superestimada. Ele não argumenta que o autor não existe ou não deve existir, mas que não faz sentido usar o autor ou sua biografia como fonte exclusiva do sentido do texto. É necessário deixar obra falar por si mesma. O autor não é uma máquina de fazer signos, de fixar significados em significantes. Não há uma fonte única de saber na pessoa que a autoriza a ponto de colocá-la na função de determinar. A biografia do autor pode dar uma explicação do que levou o autor a escrever o texto, mas ela não atribui sentido a ele. Em vez disso, a atribuição de sentido é efetuada pelo leitor.
O autor, enquanto instituição, é uma modalidade regulamentadora do discurso, que controla o leitor e impõe uma ética de leitura. A morte do autor (Barthes, 2004) propõe que o leitor seja desvencilhado da imposição dessa ética, que incide como um limite na significação. Barthes propõe uma concepção de texto que é intertextual, evitando a totalização de sentido (Bellei, 2014). Uma maneira de se desvencilhar desse imperativo autoral é admissão da proposta de que o Eu não é substância, mas efeito da linguagem, o que faz com que o texto perca o seu centro.
O texto clínico
Je e moi são termos designados por Lacan para falar da divisão constitutiva do sujeito da psicanálise. O je se refere ao sujeito da enunciação, construção simbólica associada à verdade do desejo. O moi é o sujeito do enunciado, pertencente ao registro do imaginário. Ele é uma ficção alienante, um sintoma, um “conjunto de certezas imaginárias que o indivíduo possui a respeito de si mesmo” (Sales, 2005, p. 125).
Podemos considerar o moi como o enunciador, o scriptor (Barthes, 2004), que constrói a narrativa e a relata. Em contraste, conforme a visão tradicional, o je seria o produtor do texto, a instância mítica de onde o texto surge e que lhe atribui sentido, o autor propriamente dito do que podemos chamar de texto clínico.
É possível entender o material que é expressado durante a sessão como um texto. O texto clínico é o material com o qual trabalhamos. Ele pode ser modelado, interpretado, ressignificado. Além do texto, temos o contexto: ausências repetidas, etc., que são como fatos externos à obra. O que observamos e outras externalidades tem tanto peso quanto qualquer outro detalhe, de valor análogo à história do autor.
Opto aqui pelo termo enunciador em favor ao de narrador, fazendo referência à teoria da enunciação de Benveniste e o conceito de narrador de Benjamin.
Em sua teoria da enunciação, Benveniste descreve dois tipos: enunciação discursiva e enunciação histórica. Na primeira, estão implicados sujeitos e um contexto específico, por meio de marcadores de quem fala, quem ouve e referências ao tempo presente. Na segunda, não há esses marcadores, sugerindo atemporalidade, o que dá uma aparência de verdade estabelecida (Branigan & Buckland, 2014). A enunciação clínica oscila entre esses dois registros: hora discurso, hora história.
Acredito que o romance familiar do neurótico (Freud, 1996), seu mito individual (Lacan, 2008), o sintoma, a fantasia, a cristalização de sentido, etc., estejam categorizados do lado da enunciação histórica, já que podem ser expressados sem os marcadores de sujeito. Mesmo que façam referência a um sujeito, elas são estruturados como verdade, o que os coloca na categoria do não questionado. A enunciação discursiva se encontra nos outros momentos, sejam eles de dúvida, de comprometimento, de planejamento, de relato, etc.
O aumento da frequência da enunciação discursiva no texto clínico pode indicar uma maior presença do sujeito, um comprometimento com sua posição. Conforme Biazin e Kessler (2017), é um sujeito evanescente que só aparece enquanto enuncia. O objetivo não é que se constitua um sujeito constante, o que seria retornar a uma busca de substancialidade do sujeito, mas que ele possa aparecer mais vezes.
Enquanto não inserido como marcador linguístico em sua enunciação, o sujeito não tem alternativa além de permanecer passivo em relação a seu destino. A passagem de história para discurso, em que se assume um papel, uma responsabilidade na história que enuncia, aumenta a oportunidade de que se opere alguma mudança. Em vez de atender a demanda de um reestabelecimento de uma verdade, de restituí-las em sua função determinante, a psicanálise faz manutenção dessa falta, que é usada como motor. Por outro lado, há também uma função de construção de novos mitos, novas enunciações históricas, que geram bordas para que o sujeito possa existir. Há essa tensão entre uma borda mínima necessária e uma borda excessiva, limitante.
Uma diferença notável entre associação livre e a escrita é a oportunidade que o escritor tem de manipular a cadeia, enquanto ao enunciador não é dado esse privilégio. Nesse sentido, quando se trata de fala, nenhuma enunciação é histórica e toda enunciação é discursiva. Algumas enunciações apenas se apresentam como históricas. A possibilidade que todo discurso seja transformado é um dos pilares da prática analítica.
Esse texto clínico necessita da associação livre para que exista. A falta do imperativo de que um discurso tenha que fazer sentido gera a possibilidade de sua enunciação para além da censura. O despotismo do autor, regulador dos sentidos possíveis, exigência de coerência, interrompe a possibilidade de um discurso livre. Conceber o sujeito de uma análise como autor acaba por atribuí-lo essa função de controle, de intencionalidade consciente, que é oposta à da concepção do sujeito a qual se busca.
Ambos Derrida (Nascimento, 2004) e Kehl (2001 p. 58) enfatizam a questão do enigma da escrita. Ela permite que tudo seja dito, mas, ao mesmo tempo, obriga que haja uma lacuna. Esse segredo não é uma coisa, mas uma rasura, algo que falta. A riqueza da escrita é a sua permissão para a interpretação. Estando dispensadas as centralidades de significação da metanarrativa religiosa e do autor como fonte de sentido, a busca pela cura se transforma em uma cura pela busca.
Foucault (2018) diz que, hoje, os discursos literários não podem ser recebidos sem a função do autor. A ideia é que em nosso texto clínico possamos fazer justamente isso, fazendo da fantasia uma enunciação discursiva.
Carvalho (1997) afirma que a capacidade da escrita cria “uma experiência de verdade por meio de uma realidade ilusória” (p. 80). Podemos argumentar que a experiência de verdade não nasce da escrita, mas da leitura. O Eu é a ficção, a verdade ilusória, que possibilita essa experiência de verdade.
Não há uma verdade a ser desvendada nem a ser expressada, mas a ser construída. Bellei (2014) argumenta que Barthes, em seu esforço de destituir o autor de sua autoridade, contraditoriamente a transpõe para o leitor, que se torna o ponto centralizado, produtor de sentido. Em análise, não é esse o objetivo? A direção da cura aponta para essa leitura do texto clínico como produtora de sentido. Não a revelação do sentido encoberto nem a expressão de uma verdade latente mas, precisamente, da construção do sentido no acontecimento. Foucault (2018) afirma que a função-autor nasce da obra, e não o contrário; no nosso caso, a função de sujeito nasce da leitura dessa escrita. O que atribui sentido não é a enunciação do indivíduo, mas a leitura do sujeito sobre o que foi dito; o sujeito lê e é retroativamente produzido por aquilo que leu. Como todo autor é leitor de seu próprio texto, e toda leitura é uma interpretação, o enunciador pode ser colocado em posição de sujeito, de enunciação.
Verossimilhança
Se a formulação da função de verdade é associada a rituais, um elemento essencial de nosso ritual enquanto modernidade é que a informação seja plausível (Benjamin, 1985, p. 203). O romance realista, representante da modernidade, tem como valor também a verossimilhança, a possível equivalência com a verdade. Esse valor não é transposto para outras formas de prosa; a verossimilhança só é compatível enquanto valor individual. A vida em comunidade permite outras formas de texto, com a mesma legitimidade, apesar de sua comparativa irracionalidade. Outros tipos de textos possíveis seriam, por exemplo, o mito ou a narrativa.
Por exemplo, por que Édipo não simplesmente evitou matar qualquer pessoa após receber a profecia? Essa é uma pergunta pautada na verossimilhança, na informação, característica do discurso do romance. Não é disso que se trata, nem no mito, nem na narrativa. A questão é o sentido, o que há além e por trás do significado (Eidelsztein, 2017, p. 121).
Considerando a verossimilhança como elemento estilístico e estrutural fundamental do romance realista, as palavras verdade e verossimilhança tem a mesma função, o mesmo significado, no contexto do texto clínico. A verdade só tem existência enquanto função, jogo discursivo, e essa função é exercida pela propriedade da verossimilhança. Uma configuração circular, em que a verdade é determinada por sua possibilidade de ser igual ao que ela poderia ser. Disso deriva que é necessário apenas o ritual (Foucault, 1989), e o ritual da produção desse estilo de verdade é sua posição no dispositivo analítico.
O próprio uso da linguagem é um sintoma em que nós nos perdemos, ordenados que somos por ela, e a qual permanecemos assujeitados na busca de um texto original. “A escrita seja ela qual for, será sempre um artifício, e nesse sentido não poderá nunca ser salvação pessoal para o escritor” (Carvalho, 1997, p. 85). Uma leitura possível para a afirmação de Carvalho (1997) de que “escrita não é terapia” (p. 85) é que se existe alguma “satisfação e autoridade” (p. 85) possível na linguagem, ela não ocorre na escrita, mas na leitura.
Contra o deslizamento infinito
Se as palavras – como forma de separação e perda – ferem o autor, são as palavras – como forma de conexão e realização – que fascinam com a promessa inatingível de curar a ferida mesma das palavras (Carvalho, 1997, p. 85)
A ferida das palavras é a angústia decorrente da incapacidade estrutural da linguagem de fundar o sujeito enquanto substância. Tentamos tapar essa falta estrutural com mais linguagem, pela via de discursos como mitos, narrativas, histórias, romances. Ficamos presos nesse ciclo, como escritores que passam a depender de sua escrita, que o fazem de modo compulsivo, dos textos que se escrevem por meio de seus autores. Não vai ser por meio de encadeamentos infinitos que encontraremos consolo. Se queremos chegar a algum lugar, temos que parar. A questão é onde, e como, fazê-lo.
Uma diferença entre a proposta de Barthes (2004) para a análise textual e a proposta clínica deste texto é a divergência sobre o não esgotamento das possibilidades de significado. Em análise, o corte deve ocorrer em algum momento. O objetivo não é o encadeamento infinito, mas o encadear até certo ponto, interrupção da cadeia significante, corte que opera em toda fala do analista. A cristalização (temporária) de significado pós-interpretação é interessante por obter efeitos tangíveis na vida do sujeito que busca análise. Diferente da proliferação de sentidos de Barthes, existe um ponto de chegada, mesmo ele seja alcançado por meio da errância. A pragmática da terapia indica a direção: transformar enunciação discursiva em enunciação histórica.
Da mesma forma que “tecnologias de dominação . . . operam nas práticas de leitura definidas em campos normativos de poder que produzem sujeitos-leitores atrás do uso sistemático de tecnologias disciplinares de controle” (Bellei, 2014, p. 170), o sujeito é normalizado para que tenha uma leitura específica de sua própria narrativa.
“Nosso objetivo não é encontrar o sentido, nem mesmo um sentido do texto” (Barthes apud Bellei, 2014, p. 168). Aqui, sou obrigado a discordar. Temos que encontrar um sentido, mesmo que temporário. Tendo efeito, qualquer sentido basta. Na perspectiva de tal pragmatismo, a utilidade dos atos discursivos não tem que ocorrer sempre, mas tem que ocorrer. Há de passar-se por uma totalização do sentido, sempre provisória, mas presente; uma verdade que se institui para depois cair. A questão é que esse ponto de parada deve operar não antes da ação ou da enunciação (enquanto censura), mas em um momento específico, que tem como função o questionamento de uma função de verdade e a possibilidade do estabelecimento de outra. Trabalhamos com o sujeito da ciência; a ciência funciona com verdades temporárias.
O analista como narrador
O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje [1936] algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada (Benjamin, 1985, p. 200).
Benjamin (1985), em seu texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” afirma que perdemos, junto da sabedoria, a responsabilidade por saber narrar uma história. Se fazemos uma analogia com a clínica, é intuitiva a colocação da responsabilidade do “contar corretamente” sobre o analisante. Novamente, argumento que a questão importante não é o falar, que acontece quase automaticamente, mas o ouvir (a leitura), que pode ser feita de maneira diferente. A função do analista é promover, enquanto objeto, essa outra leitura/escuta.
É interessante a relação entre o narrador de Benjamin e o papel do analista. Em um momento que não podemos mais aconselharmos a nós mesmos, buscamos um profissional que possa fazê-lo por nós. Apesar de nosso preconceito com a palavra conselho, a concepção de Benjamin não é a de dar uma resposta por via da autoridade, mas proporcionar que a história do sujeito continue.
Um fato central para a imagem do narrador é não-diferenciação absoluta entre indivíduos, conforme já operada hoje. Existe algo de permeável entre o sujeitos que permite que experiências sejam compartilhadas, que não sejam apenas um romance lido sozinho. O conselho é inviável em nossa nova configuração por causa da divisão entre indivíduos. Se consideramos o inconsciente como esse fator que no une, permite-se que sejam dados conselhos, nesse sentido. Compartilhamentos de significantes e significados, que não são determinantes enquanto discurso de autoridade, mas determinantes enquanto subjetivação coletiva.
Outra questão em que o analista se assemelha ao narrador é a qual Benjamin (1985) alude quando fala “Heródoto não explica nada” (p. 204). O papel do analista não é o de explicar um acontecimento, mas por meio de uma interpretação promove-se a continuação da história. Explicar a história fecha as possibilidades. O conselho de Benjamin não é uma interpretação fechada, é uma interpretação aberta, oposta ao que ele chama de informação.
O respeito ao texto
Eco (2003) argumenta que, em oposição ao “universo de um livro que nos surge como um mundo aberto”, o mundo é um “livro fechado que consente uma só leitura” (p. 12), o que exemplifica usando a lei da gravidade. Considerando o desenvolvimento tanto da física não-newtoniana quanto da filosofia da linguagem, acho seguro dizer que o mundo não consente a apenas uma só leitura. Isso não torna as leis anteriores obsoletas, mas apenas revela restrições em seus usos, “instrumentos que ainda podem ser úteis” (Derrida, 1970, p. 267), ecoando novamente o relativismo e o pragmatismo das teorias pós-modernas. A teoria psicanalítica compartilha dessa base filosófica: o que determina o poder de uma interpretação é sua utilidade, que só se revela posteriormente. Uma interpretação que está “correta”, mas não surte efeito, não existe. É irrelevante se a materialidade do universo é limitada ou ilimitada, o importante é que as possibilidades de discurso sobre ele são ilimitadas.
Eco (2003) afirma que uma obra literária tem certa materialidade limitante que nos “obriga a um exercício de fidelidade” (p. 12), ideia de reafirmo aqui. Mas, se existe alguma intenção do texto clínico a qual devemos “profundo respeito” (p. 12), é propriamente a dimensão do sujeito que surge nas falhas a despeito do narrador que emite a mensagem, e não necessariamente ao enunciador da mensagem. Essa é uma das questões que diferencia a psicanálise de outras abordagens psicoterápicas, como as que dão alta ao cliente após evidências de resolução da demanda inicial.
Dentro da lógica da metafísica da presença, o texto é transgressivo por não ser diretamente ligado à fonte original. A lógica da escrita é subversiva em sua natureza ao não se conformar (Nascimento, 2004).
Nascimento (2004) fala que mesmo nos textos de Platão, à escrita é atribuída uma dupla personalidade: de ser órfã, abandonada por seu pai, e em outros momentos acusada de matar o próprio pai. Então, “o texto escrito pode dizer aquilo que o pai-falante jamais diria, constituindo uma traição à origem do discurso e um parricídio em relação ao seu autor” (p. 21).
Para Platão, a fala é relacionada a seu pai, à metafísica da presença, e portanto sagrado. A escrita, por ser indireta, é profana. Na contemporaneidade, inverte-se a lógica da verdade e a oposição texto-fala. O texto se torna absoluto, enquanto a fala é relativa. É nessa relatividade, nessa falha do absoluto na enunciação que entramos.
Assumindo que o deslize não se refere a uma verdade encoberta, a verdade se encontra do lado da escrita, que permite sua fabricação por meio do controle da informação.
Derrida associa literatura a democracia. “numa democracia, a literatura tem o direito ilimitado de colocar todas as questões, de suspeitar de todos os dogmatismos, de analisar todos os pressupostos” (p. 59). A clínica a mesma coisa. Colocar em questão, questionar a cristalização de sentido. A mesma literatura que funda a nossa sociedade é a que insere nela a alternativa, para além da verossimilhança.
Fora isso, em um contexto clínico, o foco no “respeito ao texto” perde de vista a questão principal que é a oportunidade de produção de novas verdades. Certamente existe uma materialidade na experiência do paciente, mas o relato na clínica é material apenas enquanto material clínico, passível de ser transformado pela palavra. Um ela na cadeia significante é limitado apenas a seus elos mais próximos, mas a cadeia como um todo é ilimitada.
Em certo sentido, o texto clínico tem maior similaridade com o conceito de ciência do que com o de obra literária (noção entrelaçada à função do autor; Foucault, 2018). Uma ciência admite que novas proposições sejam tomadas como verdadeiras, dependendo da maneira com que foram produzidas (Foucault, 1989), e há algum esforço para que o nome do autor não seja um dos elementos produtores dessa verdade. Independentemente de sua origem, uma interpretação pode fazer com que uma enunciação seja estabelecida como verdade e que a produção dessa verdade possa ser produtora também de alguma mudança.
Direção da cura
A neurose tem como origem a necessidade de remendar o “fio do tempo” (Kehl, 2001, p. 69.), o que em uma sociedade no paradigma narrativo não seria necessário, uma vez que a solidez imaginária proporcionada pela narrativa transpassa gerações. Quando não se possui “uma verdade preestabelecida pelos antepassados ou pelas autoridades capazes de interpretar os desígnios divinos” (p. 69), há de se buscar outra maneira.
As representações que sustentaram os sujeitos das sociedades cujo funcionamento era pautado no paradigma do narrador são diferentes das que irão sustentar o sujeito moderno. Esse estilo de ficção do Eu se dissipou hoje, necessitando a formulação de um novo para sustentar o sujeito fora de si. Quais são a nossas possibilidades de amparo, atualizadas para a sociedade do romance? Kehl (2001) argumenta que o advento da literatura foi uma tentativa: “se o sentido da vida (transcendental, transmitido pela tradição) se perde nas sociedades modernas, o romancista vem tentar recuperá-lo em sua dimensão terrena” (p. 60).
A conclusão que Kehl (2001) parece sugerir é a compreensão do papel do Outro e sua falta de possibilidade de um sentido completo. Ela comenta uma frase de Lacan, que sugere que a análise é uma operação de “passagem do romance ao conto” (p. 89). Essa operação ocorreria quando a “pretensão neurótica de tudo saber e tudo dizer sobre si” (p. 89) é dispensada, via simbolização da castração, em favor de permitir uma “ficção mais imprecisa, cheia de elipses, que suporte os enigmas em vez de tentar esclarecê-los todos” (p. 89).
O ato interpretativo na clínica se aproxima, assim, do ato interpretativo na crítica. Ao não buscar um sentido original, mas a criação de um novo. A ética da leitura é a ética do novo, do construir sentidos.
O cogito cartesiano, apesar de fundar um sujeito vazio, continua na busca de um conhecimento indubitável (Biazin & Kessler, 2017). Nossa proposta de que não haja um sentido a ser desvendado por meio do conhecimento privilegiado do enunciador é alinhada com as inovações de estrutura da literatura contemporânea. É a tentativa de uma saída da opressão da lógica, de se salvar do excesso de sentido, patente do romance realista.
Encontramos aqui a função social da psicoterapia hoje. Com a separação entre o homem e seu corpo, seus desejos passam a pertencer apenas a sua intimidade, local da verdade (Elias apud Kehl, 2001). A sala do terapeuta é um dos espaços de formulação de verdades, com o terapeuta como aconselhador, termo que pode ser subvertido pela definição de Benjamin.
Eco (2003) comenta que “a verdadeira lição de Moby Dick é que a Baleia vai para onde quer” (p. 20), assinalando a função repressiva do texto, que existe para além, e anteriormente, aos desejos do leitor. Compara isso com uma estrutura hipertextual em que pode-se reescrever uma obra a partir do interesse do leitor. Apresenta-se aí uma dualidade: a estimulação da criatividade e liberdade (como ideal da filosofia da alma pós-Agostinho) ou o acerto de contas com o que já foi escrito (como a inexorabilidade do destino grego). Uma subversão dessa ideia da fidelidade ao texto é que mesmo o corte, com sua função ‘castradora’, tem como função dar oportunidade ao novo. Um texto lido não só reproduz o que a baleia fez, ele produz algo de novo.
Se Freud diz que a diferença entre a escrita criativa e a fantasia é que o escritor consegue retornar à realidade em sua criação (Carvalho, 1997), o analisante, autor/leitor, cria sua própria realidade por meio da fantasia. Produz sua verdade e é produzido por ela. Como Freud rapidamente descobriu, “a realidade psíquica é o que confere um signo de veracidade” (Carvalho, 1997, p. 81).
Talvez o real não seja modificável, mas a fantasia que o recobre pode ser transfigurada. “O mundo é assim reordenado, reinventado ou reformado pela escrita” (Carvalho, 1997, p. 84). Mas isso não é o bastante. A transformação do texto ainda permanece no âmbito imaginário. O final de uma análise é direcionado à “‘desconstrução’ dos sujeitos modernos, personagens dos romances de sua própria vidas das quais se creem os únicos autores” (p. 89).
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Referências
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