Psicanalidades: psicanalismo, perversão e ideologia

A palavra perversão sempre foi associada a um preconceito.

A necessidade de tal simpósio me ocorreu há algum tempo como
resultado indireto de uma discussão com o Dr. Sandor Feldman
sobre as dificuldades que nossos colegas mais jovens encontram
ao tratar pacientes com práticas sexuais perversas. Essas
dificuldades se devem principalmente à falta de experiência dos
analistas mais jovens [...]. Na verdade, esses pacientes oferecem
um grande desafio à habilidade do terapeuta. Ao longo dos anos
em que se entregam a práticas perversas, eles construíram tantos
obstáculos ao seu profundo desejo de gratificação heterossexual
que seu desejo inconsciente e até mesmo parcialmente
consciente pela heterossexualidade é combatido com muitas
defesas conscientes e muitas outras inconscientes. (Lorand, 1956,
ix)

A palavra fetiche é relativa a feitiço. Ela teve seu início com colonizadores portugueses tentando compreender povos africanos que, diferentemente deles, não adoravam ídolos (representações de uma transcendentalidade) mas fetiches (objetos poderosos em si). Assim começa o conceito de fetiche: crenças primitivas e supervalorização de objetos arbitrários (Favaretto et al., 2018).

Posteriormente, psiquiatras como Charcot, Binet, Krafft-Ebing, e Havelock Ellis associaram o fetiche à perversão. Falavam de um outro patológico, inferior ou degenerado, continuando com o espírito de desprezo à alteridade (Favaretto et al., 2018).

Tal herança moral também se faz presente em Freud. Por um lado, ao tratar o fetichismo como um desvio da sexualidade reprodutiva natural. Por outro, como resposta à ameaça de castração, em que se nega uma realidade, optando pela fantasia.

Da mesma forma que Marx pega o conceito de fetichismo e o redireciona aos civilizados, inserindo assim a alteridade degenerada dentro da própria civilização (Favaretto et al., 2018), Freud mostra como esses desvios (preferir fantasia a realidade, se comportar contra a natureza), na verdade, acontecem em todos os civilizados normais.

Estrutura

Um dos princípios centrais do livro “Estrutura e Perversões” de Joel Dor (1991a) é o de que “não parecem existir perversões senão perversões sexuais” (p. 12). Ele insiste neste ponto por considerar inaceitável a hipótese das “perversões instintivas”, como utilizado por Henry Ey, que ele entende como exercícios de ideologia e normalização.

Baseada em critérios sociais como vandalismo, crueldade e delinquência, esse entendimento da perversão produz enunciados claramente preconceituosos, como “deterioração patológica da personalidade” e “o perverso deseja o mal”, nos remetendo às afirmações dos psiquiatras citados anteriormente. Essa noção de perversão se utiliza não só de conceitos psicológicos (deficiências intelectuais, desequilíbrios constitucionais, psicoses, epilepsia, histeria, etc,) mas também morais: “a malignidade, a crueldade, a violência de caráter, a indisciplina, a dissimulação e a mentira” (Dor, 1991a, p. 69).

Outro princípio norteador do texto é o privilégio que ele dá, enquanto critério diagnóstico, à análise da estrutura – e um proporcional desprezo à observação de comportamentos. Para ele, uma abordagem estrutural tem muito mais a oferecer do que o uso de uma “apreensão fenomenológica”. Com tal abordagem estrutural, o objetivo seria evitar a incidência da ideologia que advém do observável, que termina na formulação de conceitos como o de perversão instintual.

Neste livro, Dor simplesmente descarta a existência de tais fenômenos. Isso o libera, momentaneamente (como veremos), para que ele possa construir uma investigação que não é ideológica: explicações metapsicológicas das origens das sexualidades desviantes. Ao contrário das perversões instintivas, que são ideologia, as perversões sexuais (sadismo, masoquismo, fetichismo, “transexualismo”, homossexualidade, etc.) seriam passíveis de serem compreendidas estruturalmente, estando, portanto, sob a égide da neutralidade psicanalítica.

Em resumo: utilizar critérios comportamentais, conforme faz Ey, para avaliar o paciente baseando-se no sistema de valores do médico seria fazer ideologia e não psicanálise. Outra coisa que seria ideologia (e não psicanálise) seria a prescrição do que ele chama de normas sexuais, ou seja, assumir que o tratamento de um homossexual se daria através da superação dessa sexualidade desviante.

Portanto, vemos que Dor está bem informado sobre os perigos que transpassam a psicopatologia. Qual seria a solução dele para evitar esse caminho alienador?

Metapsicologia

Uma psicopatologia necessita, por definição, de uma etiologia. Para o freudolacanismo, isso se realiza por meio da metapsicologia e/ou e da estrutura.

A estrutura perversa, para Dor, se constitui no processo de denegação da diferença dos sexos, ou seja, pelo complexo de castração no homem e pela inveja do pênis na mulher. Seu plano é se livrar da ideologia utilizando o conceito de “inveja do pênis”. Irônico!

Em sua fidelidade a Freud, ele afirma que não há mulheres perversas. Isso é uma consequência necessária do seu entendimento do que é a diferença sexual[0] como a cena originária em que a criança vê que a mãe não tem pênis, etc. A perversão feminina, portanto, não seria possível, devido à “relação que a mulher mantém necessariamente com o real da ausência fálica” (1991a, p. 188). No máximo, a mulher utilizaria da perversidade geral da sexualidade para se colocar como objeto nas fantasias perversas masculinas.

Para alguém que afirma que a questão da “transexual feminina” (FTM[1]) é não conseguir separar o pênis Real do falo Simbólico, ele parece bastante comprometido com a anatomia.

Escolho esse livro como pivô deste texto não porque desgosto de Dor[2], mas seu texto possui um raro traço no discurso lacaniano: a transparência. Eu o vejo como um mérito. Mas por bem ou por mal, quando o lacaniano se torna compreensível, é mais fácil de ver aonde sua doutrina falha.

Lacan, por exemplo, produziu uma grande confusão na questão da diferença sexual, por ele abordada na tábua da sexuação. A situação de que falo neste texto tem sua origem nesse ponto óbvio de esoterismo lacaniano. Mais precisamente, em sua obstinação em usar os termos masculino e feminino, como usava Freud. Enquanto Freud se referia a uma diferença sexual material, Lacan, até aonde entendo, se refere a posições em uma estrutura discursiva.

Performance

Voltemos ao ponto da ideologia. Dor afirma que definir “saídas necessárias” (como no caso da cura gay) é ideologia. Isso é interessante, tendo em vista a perspectiva que temos, após 30 anos, sobre aquilo que ele afirma sobre a transexualidade. Não sei como era o cenário em 1991, mas hoje chamar homossexualidade e transexualidade (“transexualismo”) de perversões sexuais é, no mínimo, questionável. Vejamos o capítulo chamado “transexualismo e o sexo dos anjos”.

Dor, indiretamente, critica a noção de gênero como performance. Para ele, pensar nesses termos é trabalhar com comportamentos em vez de estrutura. Nessa linha, ele conclui que a questão transexual é sempre relacionada com algo da falsidade. Tal performatividade é vista como uma máscara, que não alcança a realidade do sexo biológico[3]. Aqui, o sexo seria “estrutural”, devido à metapsicologia da relação com a mãe.

Uma das afirmações de Dor sobre a transexualidade, enquanto subdivisão da perversão sexual, é que “o único e autêntico transexualismo é o transexualismo masculino” (Dor, 1991a, p. 169). É uma consequência clara da orientação freudiana que toma da definição da perversão: ela é produzida pela angústia de castração. Mulheres não sofrem angústia de castração, então elas não podem ser perversas.

De qualquer forma, é um problema de desenvolvimento, do édipo. A castração não se instaura, mas o perverso transexual não sabe disso. Como não tem acesso ao significante fálico, o transexual só consegue lidar de forma primordial: via corpo. Ele intui a solução, que seria a castração, e tenta fazê-lo no Real do corpo, por via cirúrgica.

Vemos como isso encaixa na ideia de que o único transexual genuíno é o masculino. Podemos encarar isso ou como uma convergência elegante da teoria ou como uma conveniência suspeita.

É assim que ele chega na conclusão que a “retificação cirúrgica” é “uma intervenção cuja perspectiva terapêutica limita-se, de fato, a satisfazer a reivindicação delirante de um sujeito” (Dor, 1991a, p. 176). Apesar da intuição correta do perverso transexual (masculino), sua castração é impossível, e tal investida não tem como funcionar, pois é barrada estruturalmente: “a cirurgia aparece como uma medida no máximo paliativa, mas não curativa de um problema que é essencialmente de ordem psicopatológica.” (Dor, 1991b, p. 177).

Esse desprezo aos que não acederam à lógica fálica comparece também quando fala da cirurgia estética. Todas as performances têm, em sua origem, algum tipo de ilusão, de desconhecimento da ordem fálica. Que alguém faça uma cirurgia estética é uma tentativa de ajustar uma imagem ao ideal por meio de uma intervenção no real, “destino mais comum dos ingênuos que se oferecem às virtudes frequentemente calamitosas da cirurgia estética.” (Dor, 1991b, p. 181). Parece que todos são alienados, mas alguns são mais alienados que outros. Tudo parte do pressuposto que há um corpo real que está sendo recusado e de um tratamento psicanalítico que, caso realizado, demonstraria a futilidade de uma alteração do mesmo.

O texto não afirma nada categoricamente, deixando apenas como sugestão a ideia da perversão como um problema de fixação em ilusões ou desenvolvimento edípico interrompido. Uma maneira de explicar a falta de enunciações prescritivas sobre a perversão é a hipótese de que não há nada a ser feito. Já que são fruto de um problema na instauração da função paterna, o perverso é portador de um édipo que não pode ser consertado, de delírios que não podem ser elaborados. Assim, sobre a estrutura da perversão, que compõe homossexuais, transexuais, travestis, fetichistas e – curiosamente – serial killers, nada há a ser feito, porque a estrutura é imutável.

Para mim, isso é uma demonstração de como um preconceito prescritivo – que, para seu crédito, Dor explicitamente tenta evitar – acaba aparecendo dentro de enunciações denotativas. Vejamos o que isso significa.

Prescrição

Há vários tipos de enunciação[4]. Para os nossos propósitos, denomino dois: denotativo e prescritivo. A enunciação denotativa é relativa a fatos; ela fala do que existe; seu modo de legitimação é a epistemologia, ou seja, aquilo que pode ser conhecido; ela lida com a verdade. A enunciação prescritiva é relativa a ordens ou orientações; ela fala do que deve ser feito; seu modo de legitimação é a ética, ou seja, aquilo que é "correto de ser feito"; ela lida com a justiça.

Dor explicitamente afirma que a sua solução para evitar tal tipo de ideologia é a utilização da metapsicologia. Enunciações metapsicológicas são denotativas: não como o aparelho psíquico deveria funcionar, mas, simplesmente, como ele funciona. Como ele fala do que é, e não do que deveria ser, é impossível que ele faça ideologia, certo?

É evidente que não. Toda terapia é, por definição, prescritiva. Um texto de psicologia clínica precisa, para ser útil, prescrever algo. Um psicólogo pode se recusar a orientar ou aconselhar seu paciente, mas que ele entenda que a direção da cura é a vitalização, por exemplo (Figueiredo & Junior, 2018), já permite a formulação, mesmo que implícita, de que o paciente deve ser vitalizado.

Se não há prescrição, não há terapia; há apenas escuta. Não há terapeuta que apenas ouve e não fala nada. Para falar, o terapeuta tem que eleger algo como importante (mesmo que seja “arbitrariamente” via atenção flutuante).

As enunciações prescritivas explícitas sobre a perversão parecem menos comuns que sobre a neurose, por exemplo. Apesar disso, para encontrar a direção do tratamento na perversão, precisamos identificar quais são as enunciações prescritivas, implícitas ou explícitas, que lhe dizem respeito.

Uma enunciação pode aparentar ser denotativa, mas podemos encontrar suas prescrições nas entrelinhas. Vimos como isso acontece quando Dor aborda a transexualidade. Vejamos, agora, quando ele fala sobre gozo.

Entropia

Para falar das estruturas psíquicas, Dor (1991a, p. 59) se utiliza de uma metáfora para abordar o que ele chama de “economia paradoxal do psiquismo”, que pode ser descrita da seguinte forma:

Máquinas são diferentes de organismos, porque organismos sofrem de entropia: um tipo de princípio organizador do universo que produz desintegração[5]. Ao mesmo tempo que há um direcionamento natural à desintegração, há uma economia psíquica da integração. Todo organismo se encontra capturado em um jogo que, apesar de vital, aponta inevitavelmente para a morte. Quando mais ordem, mais duração terá a vida, que é um processo mortal: “quanto mais o organismo consome ordem, mais faz durar o crescimento de sua desordem” (1991b, p. 57). A estruturação psíquica (ou seja, a relação com a função fálica e, portanto o complexo de édipo), é necessária e imutável, mas também é a maior produtora de “desordens psicopatológicas”. Por isso, paradoxal.

Gozo e castração se encontram em posições opostas nesse combate cósmico. O gozo estaria do lado da entropia, enquanto a castração estaria do lado da organização. Como a angústia vem do gozo, toma-se partido ao lado da castração.

A parte sobre as máquinas não sofrerem de entropia parece tangencial, mas ela nos direciona a aquilo que realmente importa. Me parece óbvio que máquinas sofrem de entropia tanto quanto organismos. Elas não precisam comer, mas suas peças enferrujam. Elas precisam de manutenção da mesma forma que humanos precisam de cuidado.

O que as máquinas não são é castradas. Postular a entropia como propriedade energética desorganizadora tem como consequência a definição de um “gozo entrópico” que precisa ser represado, administrado, organizado, reduzido; segundo Dor, isso é feito por meio da castração. A castração é uma propriedade orgânica, humana, viva, diferente do gozo mortífero, que nos leva à extinção, ao aniquilamento, à eliminação.

A articulação da metonímia gozo-entropia-morte-mal faz com que tudo o que é oposto dela, ou seja, o que limita o gozo, reduz entropia e produz vida se torne um objetivo vital e, portanto, necessário, vivo, bom, correto, legítimo. É o Platão[6] em tempos de Miller.

“Esse modo de economia impõe que aceitemos a necessidade de manter cada vez mais ordem para que o crescimento de desordem não se precipite, mas, em contrapartida, dure o maior tempo possível. No caso da estrutura psíquica, isto equivale a reconhecer que o desejo do sujeito deve permanecer continuamente submetido à função fálica para que se economize a irreversibilidade do gozo. Desenvolve-se o gozo verdadeiramente segundo um crescimento entrópico? Parece difícil negar que toda a patologia psíquica não deixa de confirmar esse crescimento de desordem. É à essência mesma do desejo que devemos esse desenvolvimento entrópico.” (Dor, 1991a, p. 59).

A entropia é inevitável, mas devemos evitá-la para sustentar a vida. Devemos. Encontramos a prescrição!

Na página seguinte, ele se autoriza a falar: “em psicanálise, não há moral porque a estrutura não muda”[7] (Dor, 1991a, p. 60). Ele diz: seja qual for a narrativa que você encontre, ela seria apenas uma fantasia relativa à verdade derradeira, ao fato universal: a inevitabilidade da morte.

Até aí, seguimos um Heidegger travestido[8]. Mas somos psicanalistas, não filósofos. É aí que Dor faz o que Heidegger condenava: metafísica, ou, mais especificamente, metapsicologia. A angústia/ansiedade é relativa ao gozo, e o gozo pode ser barrado pela castração. É necessário que ele o seja, para a manutenção da vida. Seguindo essa linha, nos encontramos eternamente submetidos ao édipo. E ainda bem! Melhor que morrer de entropia. Melhor que ser desintegrado, que é a marca de toda patologia.

Resignação

Toda a estrutura que constrói Dor depende dessa única fundação: a metapsicologia não é ideológica. É assim que a solução proposta para a ideologia agenciada no discurso sobre o “perverso instintual” é metapsicológica. E aí ele entra em uma grande explicação de como funciona o complexo de castração, como o perverso fica preso no pai imaginário sem aceder ao pai simbólico, etc.

Inexoravelmente, a psicanálise se direciona à resignação infinita (Deleuze, 2005, p. 312).  É a “norma sexual” psicanalítica. Ela, teoricamente, se protege da prescrição (e portanto não é moral) porque como “a estrutura não muda”, não há prescrição possível além de um tipo de conciliação daquilo que não muda em si com aquilo que é difícil demais de mudar no mundo. Tudo isso feito sob a égide da vida, da proteção, da vitalidade.

Um outro lado dessa formulação é que a neurotização não pode existir. Isso se apresenta como uma vantagem, já que, se ela existisse, Dor seria obrigado a dizer que a direção é neurotizar. É importante que o horizonte de saúde e normalidade significado pela passagem ideal pelo complexo de édipo seja isso: um horizonte, visível mas nunca alcançável. A direção do tratamento não pode ser a normalização porque a estrutura não muda. A psicanálise se encontraria, com isso, protegida de ser ideológica.

Como ela não muda, não temos o que prescrever. O psicanalista é neutro. Ele postula um objeto invariável. Com isso, pode falar da produção – etiologia – desse objeto sem nunca correr o risco de ser provado o contrário.

Torna-se fácil ver o problema de Deleuze com a psicanálise: Dor se propõe a defender a vida por meio da codificação. Menos liberdade e mais explicação; essa é a verdadeira liberdade. Esse é o verdadeiro paradoxo. É bom ser menos livre; menos sofrimento de indeterminação.

Trans–gressão

Apesar da recusa (!) de Dor de abordar o problema das perversões instintuais, ele o faz em outro livro (1991b). Ele o faz usando a ideia de transgressão como categoria privilegiada. Aqui, ele não tem como evitar a hostilidade herdada pela etimologia do fetichismo: a perversão é uma falha no desenvolvimento; sem a elaboração adequada da diferença dos sexos, ele não assume que foi castrado e se mantém suspenso em uma fantasia imaginária. Com isso, ele prova, contrariamente ao que afirmou anteriormente, que é possível utilizar a metapsicologia de forma disciplinar.

“este ponto de báscula que escapa ao perverso, na medida em que ele se encerra precocemente na representação de uma falta não simbolizável. […] O perverso não cessa de fazer desta assunção da castração a base, sem nunca conseguir aí se engajar como parte integrante na economia de seu desejo” (Dor, 1991b, p. 40)

Assim se explica metapsicologicamente a transgressão: uma fixação no jogo da rivalidade fálica imaginária, que não acedeu ainda ao simbólico. O perverso se encontra preso no pai imaginário, porque não fez o que era esperado e se desenvolveu para o pai simbólico. A recusa/denegação/renegação é a recusa do reconhecimento da falta no Outro ou, mais propriamente, da diferença sexual. Ele nega a realidade em favor da fantasia, e a realidade é que a mulher não tem pênis. Ao se prestar à análise das manifestações fenomenológicas que definem a perversão (desafio, transgressão), Dor revela como este jogo inteiro é problemático.

“Este perfil é ordenado por uma lei do desejo que não permite ao sujeito assumir nela a possibilidade para além da castração. Trata-se de uma lei cega que tende a se substituir à lei do pai, ou seja, a única lei suscetível de orientar o desejo da criança rumo a um destino que não é obturado antecipadamente. […] Na medida em que a lei do pai é denegada como lei mediadora do desejo, a dinâmica desejante fixa-se de uma maneira arcaica. Confrontada com o fato de dever renunciar ao objeto primordial de seu desejo, a criança prefere renunciar ao desejo como tal, isto é, ao novo modo de elaboração psíquica que é exigido pela castração” (Dor, 1991b, p. 42)

O perverso não teria desejo, porque o desejo é propriamente neurótico. Ele estaria preso em uma lei cega, arcaica, porque seu destino é obturado antecipadamente. É óbvio aqui que o destino derradeiro do desenvolvimento é a neurose, isso é, o pai simbólico, o desejo, etc.

Será mesmo que a abordagem estrutural de Dor elimina o componente disciplinar da psiquiatria? Ele afirma que a ideologia vem do uso da apreensão fenomenológica como critério diagnóstico. Me parece, ao contrário, que a ideologia não viria da epistemologia, mas da ética.

Isto quer dizer que é impossível neutralizar as convicções problemáticas de uma teoria ao alterar suas bases epistemológicas. Mais importante para a análise do poder disciplinar de uma disciplina/doutrina (!) como a psicanálise é a medida de suas consequências, mais do que a análise formal de seus postulados. Que uma estrutura seja imutável ou que uma perversão venha de um atravessamento inadequado do complexo de édipo são ideias que tem consequências.

Direção

Tendo posto isso, tentemos pensar uma direção pra perversão. Abordemos aqui a questão da perversão instintual ou transgressiva, que é um problema mais presente.

Como todo tratamento, é importante valorizar o desejo. Me parece que o caminho óbvio seria achar uma maneira desse desejo existir na sociedade, o que implicaria em fazer acordos com ela, já que os desejos transgressivos não podem ser levados a suas últimas consequências. Uma maneira de lidar com isso é tentar fazer a pessoa se adaptar à lei, não pela via da redução da culpa (como na neurose) mas do convencimento pela inconveniência que tal lei causaria ao perverso. Seria uma promoção de liberdade para ambas as partes.

Isso demonstra como o psicanalista não é um defensor incondicional do desejo, mas um administrador das tensões entre os desejos e a lei. Um sintoma da sociedade.

Algo que nunca está em questão, seja devido à invariabilidade da estrutura, à crença do perverso como quem sabe o que deseja, ou o fato de que isso seria homofóbico, é a possibilidade de liberar o sujeito de seu fetiche. O desejo pode ser desvendado, mas não transformado. A maior liberdade é em tornar o fetiche executável, mais do que liberar o sujeito refém de um fetiche.

Assumindo que se trata do que se chamou de “a malignidade, a crueldade, a violência de caráter, a indisciplina, a dissimulação e a mentira”, o essencial seria a possibilidade de que ele goze sem causar muito estrago, já que a) não há transformação possível e b) ele não vai deixar de gozar.

Para um sujeito que não tem incentivos para mudar seu comportamento, a direção seria a criação ou persuasão da existência de tais incentivos de forma a impedir a violência e o caos[6]. No caso do neurótico, fazê-lo seria um tipo de psicopolítica (Han, 2018), porque este internalizaria a lei. No caso do perverso, nos encontramos mais no campo da biopolítica, isto é, da sociedade disciplinar. Apesar das constantes tentativas de separação da psicanálise da psiquiatria[9], retorna-se a psicologia como técnica de controle social.

O tratamento seria orientado na direção do desejo do sujeito. A manutenção da ordem social acabaria sendo somente uma consequência conveniente?

“trata-se aqui do processo de ideologização produzido pela psicanálise e não das alterações por ela sofridas fora de seu domínio legítimo. [...] a psicanálise é um incomparável sistema produtor de ideologia.” (Castel, 1978, p. 5).

Se a psicanálise assume esse tipo de perversão como interior a seu campo, ela precisa assumir também o seu papel de tecnologia disciplinar. O que é uma formulação inaceitável dentro do discurso hegemônico da psicanálise, que a trata como revolucionária por definição.[10]

Essa formulação é importante porque redireciona o problema: de uma questão epistemológica ou pragmática a uma questão moral. O que, destaco, não é necessariamente um problema. Afinal, se as consequências violentas de certas perversões são vistas como negativas, é de bom tom evitar que elas aconteçam. Perde-se uma liberdade aqui para que haja uma liberdade maior no geral. Estamos protegendo a vida. Não é a promoção da ordem, contra a entropia, aquilo que Dor advoga? Que se formule isso em termos de gozo é apenas uma manobra de comensurabilidade psicanalítica.

Psicanalidades

Para onde foi a psicanálise original, aquela que era revolucionária por definição, aquela que se pretende melhor que as psicologias por não normalizar os sujeitos?

“Fora da presença de critérios etiológicos rigorosos, as perversões não podem ser apreendidas de outro modo senão em referência a um universo de normas. […] Ora, com a intrusão das normas, deixamos propriamente falando o registro estritamente analítico. As únicas normas que existem na clínica analítica são as que ordenam o espaço da cura.” (Dor, 1991a, p. 72).
“O personagem do psicanalista, entretanto, não é jamais social ou politicamente neutro [...] ele é neutralizável: apresenta a "vantagem" de não se destacar sobre a tela de fundo das atitudes sócio-políticas dominantes, em geral partilhadas por sua clientela. [...] Em geral, é a vinculação de classe do psicanalista a condição de possibilidade desta neutralidade: a maior parte do tempo ele joga com gradações sobre o backgrounddo consenso sócio-político” (Castel, 1978, p. 42)

Pouco importa se o perverso não tem “senso moral” (conforme afirma Ey) ou que ele esteja fixado em um pai imaginário em vez de simbólico (conforme afirma Dor). Se falava em “caráter patológico” quando isso era aceitável; depois passou a se falar de “transexualismo”; agora, isso também se tornou obsoleto. O que a psicanálise fala depende do que a sua condição de classe autoriza. A metapsicologia se pretende descritora de um processo universal mas está absolutamente determinada por questões sócio-políticas.

Dor tenta se refugiar da normatividade usando exatamente essa metapsicologia. Ele falha não por falta de esforço (pelo contrário, se demonstra bastante informado do problema, como em 1991a, p. 73), mas porque isso não existe. Não há como separar a “explicação etiológica” das “apreciações ideológicas” porque elas são feitas do mesmo material.[11]

Ele reproduz a ideologia da psicanálise. Cabe considerar se ela é aceitável ou não. Mas é necessário considerá-la, em vez de assumir a psicanálise como extraterritorial e essencialmente revolucionária.[12]

Evidentemente, a separação entre psicanálise e ideologia é impossível. A questão urgente que se apresenta aqui, se quisermos manter nosso emprego, é da legitimidade da prática da psicanálise enquanto transpassada por ideologia.

“meu propósito não é censurar a psicanálise de se ter assim constituído, pois seria censurá-la de ser o que ela é. Pelo contrário, podemos censurá-la de não ter consciência de ser o que ela é, de cultivar o desconhecimento para dar de si mesma a mais prestigiosa representação, prestigiosa porque despida de constrangimentos prosaicos. E se, como veremos, a existência destes pontos cegos é uma condição de possibilidade da própria relação analítica, o fato de os desvelar não entra mais no quadro de uma crítica moral. É a descoberta de um princípio epistemológico de funcionamento de toda operação analítica (da psicanálise).” (Castel, 1978, p. 59)

Uma resposta simples para isso é a de que se toda disciplina é necessariamente ideológica, então isso não serve como critério de descarte. Salvo alguma revolução conceitual extrema (da qual Lacan não é um exemplo, apesar do que dizem[13]), toda abordagem conceitos de fetichismo e perversão irá herdar a moralidade original deles. Toda tentativa psicológica de abordar a questão acaba se revelando como um argumento em favor de alguma norma. Trata-se de entender qual lei se reproduz, apesar da função obscurecedora do gongorismo lacaniano.

No texto de Dor, podemos observar um preconceito em relação a gênero e sexualidade travestido de conhecimento, feito pela utilização das enunciações denotativas caraterísticas da metapsicologia. Além disso, ela agencia valores mais gerais: é uma psicanálise lacaniana vitalista, de grande influência de Freud e Miller, em que se pensa em termos de castração e édipo, de energia e gozo, de desenvolvimento. Estando colocado na mesa, o leitor pode optar por concordar ou não com tais valores. Mas é importante que todos esses pontos sejam entendidos pelo que eles são: arbitrários. Que isso seja abordado dessa forma, pra mim, já se apresenta como progresso.

Conclusão

Se a perversão instintual não existe, não há direção que a psicanálise possa dar a ela. Mas se, conforme argumentei, toda tentativa de definir perversão é fundamental e inescapavelmente ideológica, essa formulação pode ser estendida a todos os casos de perversão. É uma conclusão similar a que tiram Marchesini e Eidelsztein.

Marchesini (2014) afirma que o perverso junta desejo com a vontade, e que é isso que falta ao neurótico. Se ele “anda só, funciona bem, não tem razões para mudar” (p. 75). Nada há a ser feito. Analise é pra quem precisa. Se não há transferência, se não há demanda, não há de haver análise. Solução fácil.

Segundo Eidelsztein (2008), a perversão não é analisável, estritamente falando. Como não constitui relação transferencial, não há análise. Dito isso, ela ainda se determina de forma relacional. Ela não é transferencial por não constituir relação pela via do respeito pelo saber ou pelo amor do outro (p. 85). Ela não é, conforme costuma se falar das perversões transgressivas, um tipo de lei individual que não responde ao Outro. O perverso está tão enganado quanto o neurótico, investindo toda sua energia para demonstrar que não há falta no Outro.

Mas então o que o psicanalista tem a fazer sobre isso, já que não há análise?

Toda essa história é consequência de como o conceito de perversão é formulado. Favaretto et al. (2018, p. 215) apontam o entendimento alternativo da dinâmica perversa: não como uma falha patológica no desenvolvimento, mas uma forma de relação. Que o fetiche seja "o triunfo do artificial" só é condenável se estamos no jogo da metafísica da presença (Derrida, 1991) em que o artificial é uma cópia do natural, em um preconceito análogo ao dos colonizadores portugueses.

Quando Olympia (exibicionista assumida; Favaretto et al , 2018) diz que seu corpo é uma ferramenta pra satisfazer a fantasia do outro, a primeira reação é supor que existe um trauma que causou esse comportamento. É notável como isso não pode ser visto como um estilo de relação, mas como uma manifestação patológica. Patologia que tem como alternativas: a) ser abordada como deterioração reversível da personalidade (por meio de tratamentos morais) ou b) estrutura imutável da subjetividade. Se só há essas duas opções, fico do lado de Dor todas as vezes. Poderíamos, apesar disso, pensar na problemática perversa em outros termos?

Em vez de pensar o fetiche como “objetificar as pessoas” (algo relativo ao perverso não sentir amor), podemos fazer a análise contrária, remetendo às origens antropológicas do fetiche: “antropomorfizar objetos”[14]. Com isso, podemos tentar falar da perversão (palavra que, em si, interfere nessa tentativa) de forma que não seja patologizada. Que não seja um problema na artificialidade de uma relação, no desvio do natural, mas um problema de violência. Em vez de “a estrutura é invariante”, pode-se dizer: perversão não é doença. Não cabe procurar cura pro que não é doença. Formulação diferente, consequências semelhantes.


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Referências

Castel, R. (1978). O psicanalismo. Graal.

Deleuze, G. (2005). A ilha deserta e outros textos. Iluminuras.

Derrida, J. (1991). A farmácia de Platão. Iluminuras.

Dor, J. (1991a) Estruturas e Clínica Psicanalítica. Taurus.

Dor, J. (1991b) Estrutura e Perversões. Artes Médicas.

Eidelsztein, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan Volumen II: Neurosis, histeria, obsesión, fobia, fetichismo y perversiones. Letra Viva.

Favaretto, C. M. R. et al. (2018). O fetichismo: “O mundo é mágico!” In Safatle, V., Junior, N. S. & Dunker, C. (Orgs). Patologias do Social: Arqueologias do sofrimento psíquico. Autêntica.

Figueiredo, L. Z. & Junior, N. E. C. (2018). Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura. Blucher

Goldenberg, R. (2019). Desler Lacan. Langage

Han, B.-C. (2017). Sociedade do Cansaço (2a ed). Vozes.

Han, B.-C. (2018). Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder (7a ed). Vozes.

Jorge, M. A. C. & Travassos, N. P. (2018). Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. Zahar.

Lorand, S. & Balint, M. (1956). Perversions; psychodynamics and therapy. Random House.

Lyotard, J-F. (2008). A Condição Pós-Moderna (10ª ed). José Olympio Editora.

Marchesini, A. (2014). La estructura perversa, virtualia, 28, pp 73-78.

Notas



  1. Para uma visão alternativa do que significa a diferença sexual, ver esse post, um texto bastante influenciado por Maneiras de Transformar Mundos (Safatle, 2020).

  2. Female-to-male; mulher-para-homem.

  3. Gostar de dor é um traço perverso!

  4. Similar ao que Jorge e Travassos (2018) fazem ao assumir que o sexo é biológico, o que me parece por desinformação dos desenvolvimentos das teorias de gênero mais novas. O caso de Dor evidencia mais facilmente as consequências dessa posição. Mesmo Goldenberg (2019), um autor consideravelmente mais crítico, cai nessa armadilha ao falar de sexo e estrutura. Todos o fazem sob a égide da tábua da sexuação e a confusão causada pela insistência de Lacan pelo uso dos termos masculino e feminino ao falar de um fenômeno que é mais amplo que a presença ou ausência de genitália, conforme postulado por Freud.

  5. “Este modo de legitimação pela autonomia da vontade privilegia, como se vê, um jogo de linguagem bem diverso, o que Kant chamava de imperativo e os contemporâneos chamam de prescritivo. O importante não é, ou não é apenas, legitimar os enunciados denotativos, dependentes do verdadeiro, como: A Terra gira em torno do sol, mas enunciados prescritivos, dependentes do justo, como: É preciso destruir Cartago, ou: É preciso fixar o salário mínimo em x francos. Nesta perspectiva, o saber positivo não tem outro papel senão o de informar o sujeito prático da realidade na qual a execução da prescrição deve se inscrever. Ele lhe permite circunscrever o executável, o que se pode fazer. Mas o executório, o que se deve fazer, não lhe pertence. Que um empreendimento seja possível e uma coisa; que ele seja justo, outra. O saber não e mais o sujeito, ele está a seu serviço; sua única legitimidade (mas ela e considerável) é permitir que a moralidade venha a ser realidade.” (Lyotard, 2009/1979, p. 64).

  6. Não entrando no mérito dessa compreensão um tanto vitalista do que seria a entropia. Para uma alternativa, ver https://youtu.be/kfffy12uQ7g .

  7. Derrida, 1991/1972.

  8. “Neste sentido, podemos dizer que, em psicanálise, não há moral porque a estrutura não muda. A fórmula em nada depende de um enunciado sibilino, como também não se propõe como declaração de princípio totalitário ou ecumênico. No máximo, trata-se de aperceber que somos, como sujeitos estruturados psiquicamente, simples efeitos do significante. Se é na organização desses efeitos que trabalha a estrutura, nem por isso somos senhores algum dia. Podemos imaginariamente aderir à idéia de que temos algo a dizer neste domínio colocando nosso fantasma na situação de alguns projetos axiológicos. Mas qualquer que seja a escolha dessa axiologia: religiosa, social, política, familiar, educativa, não movimentaremos nada. Afinal temos sempre algo a dizer escolhendo este ou aquele caminho favorável à cristalização das virtudes, mas não mudaremos senão para dizer isto, desmentiremos continuamente no próprio momento em que o articularmos.” (Dor, 1991a, p. 60).

  9. Travestismo também é traço perverso!

  10. “é significativa a diferença de tratamento reservada nesses meios à psiquiatria e a psicanálise [...]; as estruturas psiquiátricas são completamente reduzidas a funções de controle e normalização, mas quanto à psicanálise a questão única é seu "desvio" em relação ao que constitui sua vocação profunda.” (Castel, 1978, p. 14)

  11. “Tudo repousa, como em madame Chasseguet-Smirgel, sobre um postulado: a psicanálise é revolucionária “por definição”. Basta representar a posição autêntica do inconsciente para superar o inconformismo e fazer explodir as estruturas institucionais repressivas.” (Castel, 1978, p. 21).

  12. “A questão da legitimação encontra-se, desde Platão, indissoluvelmente associada à da legitimação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza diferente. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se se preferir, de uma mesma “opção”, e esta chama-se Ocidente.” (Lyotard, 2009, p. 13).

  13. “[a noção de psicanalismo] propõe um esquema para pensar como imediata e essencial a cumplicidade que une o funcionamento intrínseco da relação analítica com certos mecanismos constitutivos da ideologia dominante, enquanto que esta cumplicidade [...] é em geral interpretada como uma série de "maus usos" ou de alterações doutrinárias.” (Castel, 1978, p. 4)

  14. “Reformular o problema do lugar da psicanálise na sociedade através da exigência de uma reelaboração em profundidade da teoria (Lacan) [...] é se fechar estritamente no quadro da ortodoxia. É jogar unicamente com a conservação ou a conquista do monopólio da verdade psicanalítica. Ou se é fiel ou traidor, ortodoxo ou herético.” (Castel, 1978, p. 17).

  15. Talvez haja aqui uma distinção entre a perversão sexual e a perversão transgressiva: na transgressão, se objetifica pessoas; no fetiche, se antropomorfiza objetos.