1. A saturação da linguagem
Dado seu conjunto de caracteres e dimensões, libraryofbabel.info contém 293,200 páginas únicas, ou cerca de 104,677. Em comparação, o universo contém apenas 1080 átomos. Seriam necessários vários universos de discos rígidos para armazenar todas as suas páginas. (Basile, 2018, p. 67)
“A biblioteca de Babel” (Borges, 1999), apesar da preferência do narrador por sonhar com a infinitude da biblioteca, e apesar da descrita finitude dela, não é sobre a possibilidade da totalização. A impossibilidade de totalização, apesar de sugerida pela escala efetivamente infinita da biblioteca, ocorre por motivos estruturais da linguagem (Basile, 2018).
Essa finitude parece gerar a esperança de um centro de significação, uma ancoragem no mundo, um livro original. O texto, e a obra de Borges mais amplamente, explora a tensão gerada pelo infinito e suas derivações (os problemas sobre descoberta, originalidade, representação, verdade), suas consequências subjetivas e manifestações materiais: ciência, religião, filosofia, literatura.
Tanto a tecnologia que nos salvaria da indeterminação ao descrever a biblioteca por completo quanto o Real inefável da escrita que faz com que ela seja um mistério inapreensível são tentativas de abordar a angústia gerada pelos problemas do infinito. É o que Heidegger chamou de ansiedade em relação à morte, fator organizador da vida humana.
O estudo da escrita abre, necessariamente, o questionamento sobre o centro e sobre a origem. É por isso que Derrida (2017, p. 53) afirma que a tradição logocêntrica ocidental suprimiu a reflexão sobre a escrita. Levada a cabo, ela subverteas próprias fundações da filosofia. Foi essa a inovação estruturalista: o valor de um signo é diferencial, ou seja, um signo não determina a si mesmo, sua significação é função de um sistema no qual ele se insere. Se os elementos mínimos não estão presentes em si, como pensar em um centro de presença, um referente pra toda a linguagem? Como pensar “o vivo, o presente, o interior, o essencial, o verdadeiro, o legítimo, o bom e o fônico” (Nascimento, 2004, p. 27)?
A escrita de Borges pré-programa sua descendência tecnológica, não por conter a totalidade das possibilidades passadas e futuras, mas por jogar com a lacuna que perturba toda identidade (Basile, 2018, p. 20).
A biblioteca não é infinita, estritamente falando, porque seus limites são descritos: 25 caracteres possíveis, 80 caracteres por página, 410 páginas por livro, 32 livros por prateleira, 5 prateleiras por estante, 4 estantes por hexágono. Tudo o que é possível ser escrito dentro dessas limitações já foi escrito. Não há criatividade nem autenticidade. Tudo já foi inventado, nos cabe apenas descobrir. Mais que descritas as regras do jogo, foram computadas e registradas todas as configurações possíveis de peças.
Basile (2018) argumenta que esse claustro no qual os bibliotecários parecem se encontrar não é tão limitador quanto parece. Eles se resignam a encontrar, nessa abundância de conteúdo, o escrito que diz respeito à verdade. Contudo, há uma liberdade que não é descrita pelas letras: a recontextualização infinita. É impossível saturar a linguagem de significação.
A biblioteca contém todas as permutações de caracteres, não todas as significações (Basile, 2018, p. 19). A liberdade se encontra não na gramática, mas no sentido produzido pelo texto. Uma biblioteca total requer a existência de um elemento mínimo indivisível que seja foco de significação. Que seja, essencialmente, presente em si mesmo. A eleição do elemento indivisível como a letra ou o significante não consegue conter as possibilidades de significação, porque a significação não se fixa no momento da escrita, mas no da leitura. A escrita não somente “é”, mas “é-para”. Estruturalmente, portanto, a biblioteca total é impossível.
Nosso bibliotecário, por outro lado, chega à conclusão da existência de um Deus que tenha criado a biblioteca. A palavra divina, a escrita original, é o signo de significação única, saturado de um sentido imutável: “o sonho dos filósofos, o signo que corresponde a um significado puro e separado, eterno e imutável, independente das formas que sua expressão se dá” (Basile, 2018, p. 66).
O bibliotecário é um fanático religioso: chama a escrita de “embaralhamento de letras”, a interpretação de “livros que se transformam e confundem”. Em outras palavras, ele é um neurótico:
As formas clínicas da psicose, da perversão ou da neurose (consideradas como estruturas ou não) são estratégias para recompor o Outro, fazê-lo fonte e origem da autoridade, da legitimidade do saber e condição para todo desejo possível. (Dunker, 2011, p. 300)
A inteligibilidade de um texto depende de estruturas conceituais que a precedem (Basile, 2018). Isso fica mais claro em outro texto de Borges: “Pierre Menard, autor do Quixote”. Lá, ele comenta: “O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico” (1999, p. 22). O mesmo texto, lido/escrito em diferentes contextos, produz consequências diferentes. O ato de leitura depende de eventos no universo, e esses eventos não compartilham da mesma limitação da biblioteca.
Não há novidade pelo mesmo motivo que não pode haver repetição. Uma repetição pura, como Borges sempre apontava, desapareceria completamente, carecendo de toda marca pela qual poderia ser distinguida de seus antecessores. . . . a falta de auto-identidade de nossas formas de expressão garante que algo semelhante à novidade irá sempre acontecer, mesmo que não haja marca pela qual se reconheça, mesmo que sua causa nada se pareça com nossa própria agência ou espontaneidade. É até possível que esse seja o próprio princípio que mina a soberania do sujeito supostamente presente em si. Como resultado da desconstrução da invenção e da descoberta, encontraremos algo semelhante à repetição em toda “nova” experiência, e algo semelhante à novidade em toda suposta repetição” (Basile, 2018, p. 18)
A compreensão de que toda ação é uma repetição e que toda repetição traz algo de novo é o que possibilita a clínica psicanalítica. Que as mesmas palavras contenham multitudes, que elas permitam infinitas línguas particulares, e que essas línguas possam ser ressignificadas. É isso que permite que algo ou alguém mude. E que seja uma mudança legitima, real, própria, e não a adequação a um discurso. A não-identidade a si do significante é a mesma falta de identidade a si do sujeito falante.
Esse princípio é recusado tanto pelas diferentes religiões da biblioteca quanto pela espiritualidade pessoal do narrador. Seja na busca por um livro-deus ou por um livro-homem, todos trabalham em função de evitar a angústia de sua incapacidade profunda em relação ao universo, a falta no Outro, por meio da busca pelo único e verdadeiro centro do sentido. O organizador mestre, infinitamente verdadeiro mas contido em um livro. Nossos bibliotecários tratam a biblioteca como a escritura divina, mesmo com a certeza de que para cada afirmação em um livro, existe outro livro com uma afirmação contrária, e todas as suas possíveis variações. Ironicamente, eles já se organizam, mesmo na falta desse objeto, por meio de sua busca.
2. Escrita e Gramatologia
A escritura, a letra, a inscrição sensível, sempre foram consideradas pela tradição ocidental como o corpo e a matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. (Derrida, 2017, p. 42)
Segundo Derrida, a dualidade fala-escrita se estrutura da mesma forma que a dualidade mente-corpo. Historicamente, nossa tradição filosófica classificou a mente como superior ao corpo e a fala como superior à escrita. A escrita, artificial, deriva da fala, conforme afirmaram (apud Derrida, 2017): Aristóteles (p. 37), Rousseau (p. 33), Hegel (p.30) e Saussure (p. 37). Esse status é atribuído tanto à mente quanto à fala por elas estarem mais próximas de um princípio garantidor da verdade, seja ele o sopro divino ou a racionalidade humana. Acontece, então, que a fala também precisa de uma fonte. Muitas vezes, essa fonte é expressada, ironicamente, em termos de escrita1. Um tipo de registro original, a escrita natural, eterna, o “irrepresentável nome divino” (Basile, 2018, p. 54).
Há uma herança filosófica, passando por Rousseau, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger, da valorização da autenticidade (Then & Now, 2021). Se prioriza a certeza da sensação, para além da razão: uma verdade subjetiva. Notavelmente, se a sensação está localizada no âmbito do corpo ou no da alma, vai depender do momento histórico e do autor. Para Descartes, em sua fundação do sujeito da ciência por meio do cogito, os sentimentos estavam do lado da mente. Atualmente, me parece que nossa intuição é de que as sensações estão do lado do corpo.
Seguindo essa linha, há uma posição análoga ao fonologocentrismo denunciado por Derrida: a verdade subjetiva vinda do corpo. A psicanálise simpatiza com essa posição desde seu princípio: se prestando a ouvir as histéricas, cujos problemas se manifestavam corporalmente, e a valorizar os sonhos como elementos “irracionais” da subjetividade. Mas, se esses elementos são a fala, há que haver uma escrita anterior: para o psicólogo, o cérebro; para o psicanalista, o inconsciente.
Analogamente ao que Hegel faz ao criticar o formalismo do entendimento e o simbolismo matemático por eles se fazerem por meio da escrita e não da fala (Derrida, 2017, p. 30), o psicanalista, usando substância gozante em vez de sopro divino, recusa a formalização e a escritura, em favor do corpo, a voz, a fala, a experiência, o real imediato e verdadeiro. A escrita é a distorção da realidade falada, imediata à alma:
Saussure quer salvar não apenas a vida natural da língua mas também os hábitos naturais da escritura. É preciso proteger a vida espontânea. Assim, no interior da escritura fonética comum, é preciso não se permitir a introdução da exigência científica e do gosto da exatidão. A racionalidade seria aqui portadora de morte, desolação e de monstruosidade. (Derrida, 2017, p. 47).
Cientistas, psicólogos, filósofos, estão todos fascinados pelo logos, seduzidos pelo pensamento. Se perderam da experiência do corpo. Se afastaram da natureza e da verdade. O psicanalista denuncia uma ciência ultrapassada por tentar da verdade, e acaba por encontrá-la no interior de cada um.
Essa disposição pela irracionalidade como uma crítica de uma racionalidade excessiva contém dentro de si aquilo que ela tenta evitar. Por precisar recorrer à metafísica da presença[2] para fazê-lo, não se encontra algo novo, mas a velha dualidade, agora invertida. Há uma presença corporal, substancial, mais forte que a leveza da alma; a lógica da naturalidade permanece. A última tecnologia da psicanálise lacaniana passa por aí: a clínica do real, do gozo. Essa lógica é sustentada pela metapsicologia da substância gozante, do real como inefável e do corpo como real e substancial[3].
Há algo de inapreensível na relação sexual; há algo de inapreensível no poema. Desses assuntos o poeta sabe falar melhor que o cientista. O que deveria o cientista da alma estudar, então? Muitos psicanalistas se encontram nessa condição de serem poetas do corpo. Como o mago das ruínas circulares (Borges, 1999), desistem do logos, optando pela construção do corpo via experiência demiúrgica.
3. Tá, mas como te afetou livro do Borges? Como ele te tocou?
Esse assunto pode parecer um problema acadêmico. Para não entrar no mérito dos efeitos reais e problemáticos dessa epistemologia no mundo, eu posso falar porque isso é um problema pessoal pra mim.
Sempre me foi dito ou, pelo menos, foi isso que eu entendi, que eu deveria apreciar a presença. Que eu não estava presente, ou vivo, ou humano. Em resposta a algo de diferente ou errado em mim, e a minha sensação (fonte da verdade) de que há algo errado, sempre me foi prometido algum tipo de felicidade na adaptação. Que existe um local onde o sentido é saturado. Nunca, surpreendentemente, pela via da religião, mas por outras: ciência, filosofia, natureza, corpo.
Eu já tive minha cota de contato com fisioterapeutas. Na sua próxima consulta, observe como profissionais da saúde falam: eles não dizem “ficar em pé de um jeito que não dói”, ou de um jeito melhor pra você, mais eficiente, adequado, ou até mesmo melhor, eles dizem “ficar em pé certo”. Pra eles, a natureza e a moralidade são um só. E adivinha quem estudou a natureza e sabe como é o jeito certo de andar? Tudo em nome da saúde, o grande valor, direito universal e objetivo de todos. É ética, e não moral.
Eu entendo que o pilates é a técnica do corpo (Mauss, 2003) no ocidente burguês contemporâneo, que nem a psicologia é a técnica da mente. Nem falo da nutrição, cujas diversas variações e tendências são capa de revista. Para a parte da saúde psicológica é diferente, porque todo mundo é um pouco psicólogo. E, sinceramente, as sugestões do senso comum de pessoas sensíveis não são muito diferentes das sugestões de um profissional capacitado. Deve ser por isso que psicólogos evitam aconselhar.
Enfim, essa foi a sugestão eternamente sugerida pra mim. Se abrir mais, participar mais. Estar presente. Estar vivo. Para o problema de que eu não gosto de contato, que eu não quero cuidado, que eu não quero estar junto, que eu não tenho energia nem vontade de reunir, o que ocorre é apenas uma anomalia adaptativa. Existe algo de natural que eu não estou acessando. O ser humano é um ser social, afinal.
O receio da minha irmã quando eu me mudei da casa dos meus pais foi que eu me tornasse, que nem meu pai, isolado demais. O que ela não entendia era que eu estava fugindo de uma presença excessiva que ela não conseguia sentir. O que ela sentia lá era falta de presença; cada um com seus dramas. Pois, da minha parte, meu sono era consistentemente interrompido por uma presença abrindo e fechando as janelas, trancando e destrancando a porta, checando se o fogão não está vazando gás no meio da noite.
Fibromialgia é viver no deserto do real: a incerteza da dor estar na simulação ou na realidade, o medo de que dessa vez seja diferente e o dano seja irreversível. A falta de presença, de logos4, de consciência do que era pra ser a experiência imediata do corpo. Falta de confiança no princípio garantidor de toda autoridade, legitimidade do saber e desejo possível que é a sensação corporal.
Então, a ideia (a fantasia, diria o psicanalista) é que existe um discurso que corre, que não é uma projeção de uma problemática edípica mal resolvida, mas algo que de fato existe, e que é isso: o imperativo da presença, da saúde, da normalidade.
Por um lado, a profecia é edípica: se você sair de chinelo na rua você vai furar seu pé numa agulha infectada com AIDS. Como o fuso da roca de fiar, a única proteção seria o adormecimento do amor totalizante paterno e materno. Por outro, se fosse só isso, porque toda vez que eu pesquiso sobre um ingrediente na internet os resultados são sobre como ele tem 11 benefícios diferentes pra saúde?
Cada um assimila o Outro conforme lhe convém, e comigo foi assim. Da minha parte, cansei de ouvir sobre o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso. O memorando da falta de significação imutável parece não ter chegado ainda pro resto do mundo, inclusive para pessoas cuja teoria e prática depende desse princípio. Se essa diversidade de significação não é respeitada, o profissional se torna um agente reprodutor de ideologia.
Pra mim, faz tempo que a resposta não muda: calor humano, cuidado, contato, saúde. Cuidar do corpo, saúde da mente, cuidado de si. A experiência do amor incondicional. Às vezes eu tropeço, me pergunto qual é o neurotransmissor que falta pra que eu volte à natureza, a querer a presença. Se a linguagem altera pra sempre a relação com a natureza, porque todos falam a mesma língua do afeto? Que eu não aprecio, mas que eu deveria apreciar. E que será empurrado eternamente até que eu aceite, porque isso é o natural. “Natural”, aqui e agora, mas forte o bastante pra que o horizonte desse sujeito historicamente localizado comece e termine aí. Ele funciona assim, e não consegue imaginar algo diferente de si. Presente no mundo em seu corpo substancial, o demiurgo não entende que ele é, também, sonhado por outro.
Se você gostou do texto e gostaria de receber os próximos por e-mail, clique aqui. Se quiser falar sobre ele, apareça lá no post do instagram.
Referências
Basile, J. (2018). Tar for Mortar: "The Library of Babel" and the Dream of Totality. Punctum.
Borges, J. L. (1999)Obras completas Jorge Luis Borges. Globo.
Derrida, J. (2017). Gramatologia. Perspectiva.
Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica: Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. Annablume
Mauss, M. (2003/1950). Sociologia e Antropologia. Cosac Naify.
Nascimento, E. (2004). Derrida. Rio de Janeiro: Zahar.
Then & Now. (2021, 14 de abril). Being You: The History and Philosophy of Authenticity [Video]. Youtube. https://youtu.be/0FrdGMjUD1U
Notas de Rodapé
1 Por exemplo, “God created two books, according to this way of thought, the Bible and nature.” (Borges apud Basile, 2018, p. 47) e “Twenty-two letters: God drew them, engraved them, combined them, weighed them, permutated them, and with them produced everything that is and everything that will be” (Sefer Yetzirah apud Basile, 2018, p. 37).
2 “O privilegio da presença como valor supremo, em prejuízo a qualquer diferimento, repetição ou diferença em todos os sentidos do termo” (Nascimento, 2004, p. 21).
3 “the existence of a simple substance, one that would not be further divisible, is necessary to conceive of the stability or identity of any of the macroscopic structures composed of divisible elements.” (Basile, 2018, p. 36)
4 “O poder do logos, o discurso vivo, na presença e sob o controle de quem fala, está na razão direta de sua proximidade para com a origem, entendida como função de uma presença plena, a do pai do discurso ou, como se diz modernamente, o ‘sujeito falante’” (Nascimento, 2004, p.21)